segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Introdução

Viajar é preciso, e para mim sempre foi o motivo e objetivo de quase tudo o que faço.

Mesmo assim, sempre passo por um dilema toda vez que estou para partir. É a relutância em partir sozinho. É um dilema insolúvel pois sempre chego a mesma conclusão, é melhor partir sozinho e ser livre para tomar qualquer rumo ou direção. Mas essa vontade de estar com alguém sempre volta, é o conforto e a segurança de ter alguém com quem dividir os problemas, as alegrias e descobertas do caminho.

A idéia é tentadora, mas onde encontrar a pessoa certa, ou mesmo alguém disposto a partir? É difícil. Infelizmente, hoje em dia a maioria das pessoas está mergulhada em uma luta contra o tempo. Todos estão trabalhando ou se preparando para assumir alguma função nessa máquina de produzir e consumir dinheiro, coisas, e por que não, pessoas.

Sonhar tornou-se difícil, quase que incomum. Sonha-se muito com conforto, carreira e segurança, e pouco com aventura e exploração. Isso nunca me agradou e me incomoda a ironia de o homem ser o único animal capaz de criar, pensar, e chegar a conclusões. E depois deste lindo processo, inventar algo que na maioria das vezes não é realmente necessário, e que acaba por nos aprisionar ainda mais a um mundo artificial e complicado.

Esta é a história de uma viagem, um mergulho em uma outra realidade, muito diferente da realidade urbana, mas muito mais próxima de todos nós do que ela pode aparentar a primeira vista. Espero mostrar com essa história o quão simples pode ser organizar e realizar uma viagem como essa, e incentivar as pessoas que sonham com algo semelhante a partir.

Partir é sempre o mais difícil. Uma vez na estrada, as coisas sempre acontecem, e por mais que se planeje uma viagem, sempre vai ser necessário improvisar. Não quero dizer que o negócio é sair pelo mundo totalmente sem rumo ou planos, mas deve-se gastar menos tempo, energia e pensamentos com desculpas para não realizar os nossos sonhos. O brasileiro é campeão de improvisação. Todos os dias temos que usar a cabeça criativamente para encontrar uma maneira melhor para fazer as coisas. Desde um caminho alternativo para ir ao trabalho até uma maneira para fugir da violência presente na grande cidade.

Na cidade existem milhões de pessoas e incontáveis variáveis que podem nos atrapalhar. Se conseguimos sobreviver aqui sem grandes acidentes, porque não conseguiríamos sobreviver mais próximos à natureza, que é muito mais gentil e inspiradora? As coisas que podem nos atrapalhar em uma viagem, digamos, mais selvagem, são poucas, e com planejamento e equipamentos adequados pode-se ir muito longe, preparado para os problemas que são sempre os mesmos; Orientação, proteção dos elementos, alimentação e locomoção.

Se você tem o equipamento e conhecimento para solucionar esses problemas, pode fazer as malas (não se esqueça de levar dinheiro) e cair na estrada.

Boa viagem!

1 - Preparativos


Eu acabei partindo sozinho, não encontrei ninguém interessado, disposto ou livre para vir comigo. Além disso, não acredito muito em procurar companheiros de viagem. Acho que o acaso oferece oportunidades melhores. Eu sabia que ia encontrar gente pelo caminho e que poderia me juntar e separar dessas pessoas, conforme fossem acontecendo as coisas.

A viagem seria de bicicleta, para mim não existe outra maneira de viajar que proporcione liberdade e sensações tão grandiosas com um custo tão baixo. Também faria várias caminhadas nos locais por onde passasse.

O local seria a Patagônia, que já tem um nome exótico o suficiente para se tornar um local atrativo, e fora isso oferece paisagens maravilhosas quase intocadas pelo homem .

Existem duas teorias para explicar o nome “Patagônia” . A primeira diz que Fernão Magalhães, navegador português a serviço do rei da Espanha, teve a idéia ao perceber que os índios locais tinham pés enormes, daí o nome Patagônia.

A segunda teoria, mais elaborada mas talvez não mais verdadeira, diz que Magalhães se inspirou no romance renascentista “Primaleão da Grécia”, que falava sobre as terras de “Gran Patagon”.

De qualquer forma o nome não importava muito. As informações que eu tinha prometiam muitas possibilidades de aventura em lugares pouco visitados e um contato bem estreito com a natureza . Tão estreito que o vento e chuva prometiam ser grandes adversários no dia-a-dia. As caminhadas também seriam incríveis, passando por lugares muito diferentes; Montanhas, glaciares, florestas, e lagos de origem glacial.

Levaria comigo todo equipamento para acampar. Poderia carregar na bike comida para 15 dias se fosse necessário. Viajando de bike é possível levar todo o necessário para ter uma autonomia total, a única coisa que precisaria seria água, e isso não é um problema na Patagônia.

Seria perfeito, uma bike com tudo que eu precisava, e uma longa estrada pela frente, me levando a lugares maravilhosos. Muito básico e tentador, sem grandes complicações. Teria que conquistar o meu avanço contra o vento e as subidas, mas “ganharia” as descidas sem esforço algum, e elas seriam acompanhadas de boas doses de adrenalina. Encontraria incríveis visuais, que teriam sua beleza ampliada pelo silêncio e sensação de estar sozinho em um lugar primitivo e isolado.

Mal podia esperar, e hoje de volta a São Paulo, olhando para o computador e escrevendo, mal posso esperar pela hora de partir de novo.

De qualquer maneira, antes de partir ainda teria que passar pelas famosas preparações. Preparar-se bem para uma viagem é fundamental, especialmente em uma viagem aonde se está basicamente sozinho, longe de pessoas, hotéis, restaurantes, etc.

O primeiro passo foi procurar um livro que me desse informações a respeito dos lugares por onde iria passar e um mapa. O livro foi fácil, já estava de olho nele fazia tempo e nem precisei comprá-lo, emprestei de um amigo. O livro foi o “Trekking in The Patagonian Andes”, da editora Lonely Planet. Ele foi ótimo para informações sobre o clima e tem informações detalhadas sobre as caminhadas mais importantes que podem ser feitas na Patagônia. Para encontrar um mapa a coisa foi diferente, pois é muito difícil encontrar algo com uma escala adequada. Encontrei mapas da América do Sul, mas não serviam para muita coisa. Acabei arranjando um mapa de segunda mão que serviu até que eu encontrasse outro razoável, o que só aconteceu no Chile.

Com esse material na mão pude ter uma boa idéia do que iria encontrar pelo caminho. A minha primeira impressão foi um pouco intimidadora, o livro falava de ventos muito fortes que sopram durante o ano inteiro, com mais força ainda no verão. Apesar disto, o verão é a melhor época para ir a Patagônia pois assim evitam-se as fortes chuvas do outono, e o frio e neve do inverno, que tornariam uma viagem de bike muito desconfortável. De qualquer forma segundo o livro pode haver neve até mesmo no verão, e as chuvas estão sempre presentes, junto com o vento que vem do quadrante oeste-sudoeste.

O vento traz umidade do Oceano Pacífico, e essa umidade se precipita ao encontrar os Andes. Conclusão, chove muito na Patagônia Chilena, e muito pouco na Patagônia Argentina. A minha rota se mantinha quase que o tempo todo no Chile, e eu estava começando a ficar preocupado com as condições que iria encontrar pela frente. Quanto mais eu pesquisava, piores as coisas pareciam, e várias pessoas que estiveram por lá me advertiram sobre o vento e chuva.

A minha grande esperança era que as pessoas estivessem exagerando. Eu já havia tido essa experiência antes, estar fazendo algo que outras pessoas diziam ser muito difícil ou “loucura”. Nunca aconteceu nada de mal, pelo contrario, foi fazendo as coisas mais “desaconselháveis” ou “loucas” que mais me diverti e aprendi. Além disto eu sabia que muitas pessoas já haviam viajado de bike pela Patagônia, e portanto era possível fazê-lo.

Não havia nada a fazer, somente depois de iniciar a viagem é que eu ia saber a verdade sobre o clima na Patagônia. A única coisa que eu podia fazer era me preparar para o pior possível. A ansiedade era grande pois tudo poderia correr tranquilamente, mas se o vento fosse tão forte poderia ser um pesadelo.

Em relação à rota a seguir não houve muita dúvida. Eu iria começar em Punta Arenas, no Chile e pedalar em direção ao norte, passando por vários parques nacionais onde iria fazer caminhadas. Optei em iniciar no sul pois assim estaria “subindo” para o norte na medida que o verão acabava. A viagem deveria terminar em Puerto Montt, depois de 2300km pedalados em 40 dias (média de 60km/dia), e depois de aproximadamente 60 dias de caminhadas pelos parques nacionais.

Bom, esse era o plano, restava saber o quanto ele iria ser alterado durante o caminho. Depois de ter o plano e os números de dias, quilômetros, etc. definidos, resolvi colocar tudo organizado e datilografado, em forma de um projeto, o qual batizei de “Projeto Patagônia”.

Com o projeto em mãos comecei a procurar um patrocinador, mas faltava pouco mais de um mês para a minha partida e era muito pouco tempo para organizar algo. Acabei conseguindo o apoio da Anderson Bicicletas, que forneceu todas as peças para a bike. http://www.andersonbicicletas.com.br/

Faltava reunir o equipamento de campismo e o fotográfico. Eu passava o tempo organizando estas coisas e pesquisando. Na última hora resolvi levar também um equipamento para pescar trutas. A Patagônia é famosa internacionalmente como um ótimo local para pesca de truta e salmão. O equipamento era bem pequeno e leve, a vara era telescópica, e quando fechada ocupava muito pouco espaço. Tinha também uma carretilha pequena e vários tipos de isca. Eu nunca havia pescado antes, mas com três meses para viajar e muitos rios pelo caminho, com certeza iria acabar aprendendo.

Paguei a passagem, iria de avião, 550 dólares ida e volta, válido por três meses. Gastei mais em equipamentos e passagens do que na viagem em si. Foram 660 dólares em equipamento de camping, e mais 600 dólares em equipamento fotográfico. A super vara de pescar com iscas e tudo mais, ficou em 150 dólares. Nos próximos três meses de viagem, gastaria apenas 800 dólares. Não que eu tenha economizado ou deixado de comer, pelo contrário, comia muito bem, aliás numa viagem de bike a alimentação deve ser muito boa. O motivo de eu ter gasto tão pouco é que quase não havia despesas. Eu acampava de graça, me locomovia de graça, e cozinhava a minha própria comida. Eu só punha a mão na carteira quando parava nas cidades e dormia em pensões. E com 60 dólares comprava comida suficiente para uma semana.

2 - Santiago

Finalmente chegou o grande dia, e eu nem estava ansioso. Estava me sentindo distante, quase que anestesiado. Não pensava em quase nada e parecia que esse negócio de viagem à Patagônia nem era comigo. As malas estavam feitas. Coloquei tudo na mochila para caminhada, exceto pelos itens mais valiosos do equipamento que coloquei dentro de um dos alforjes da bike e levei como bagagem de mão.

Meu amigo João Paulo me levou ao aeroporto, aonde nos despedimos rapidamente e fui fazer o check-in. Despachei a bike sem problemas, não cheguei nem a colocá-la em uma caixa, apenas dobrei o guidom e tirei o ar dos pneus, para o caso de uma despressurização no compartimento de bagagem. A bike pesou 13kg, a mochila outros 13kg, e o alforje (que levei como bagagem de mão) mais 10kg. Era permitido despachar 20kg de bagagem mas não tive que pagar nada pelos 6 kg de excesso.

Dei as minhas últimas voltas pelo aeroporto. Engraçado, para mim quando estou em aeroportos sempre parece que já cheguei ao meu destino. Bom, eu já estava sozinho, ainda no aeroporto de São Paulo, mas em poucos momentos ia estar no aeroporto de Santiago, que ia ser igual a qualquer outro, chão de mármore e janelonas de vidro. É isso mesmo, já podia considerar que a viagem começara. Na realidade a viagem já havia começado muito antes, com as primeiras viajadas mentais.

O vôo foi normal, nada de excepcional, nem me lembro qual foi a comida. Cheguei no fim da tarde em Santiago. Foi com grande alívio que eu recebi a minha bike e mochila intactos. Fui direto pegar dinheiro com o cartão de crédito e em seguida telefonar. Tinha o telefone de três anfitriões potenciais para a minha primeira noite no Chile. Não conhecia nenhum deles mas eles sabiam de minha chegada. O único detalhe é que eu estava uma semana atrasado. Conclusão, não encontrei nenhum deles em casa.

Eu não tinha nenhuma informação sobre Santiago, tinha somente o livro que falava sobre as caminhadas na Patagônia, 3000km mais ao sul. Estava na hora de começar a “hablar Espanhol”. Comprei uma passagem de ônibus até o centro e enquanto esperava por ele, me informei sobre algum lugar para ficar. Eu perguntava aonde era o “albergue de la juventud”, mas o cara para quem eu perguntava não me entendia, o que me fez pensar que “albergue da juventude” não é “albergue de la juventud” em Espanhol.

Ele me recomendava ir para uma “hospedaje”, mas “hospedaje” soava caro demais para mim. Eu queria ir aonde o pessoal de mochila se hospedava, e insistia em “albergue, donde van los mochileros, me entiende?”. Finalmente, ele entendeu “mochilero”, e me falou para ir até o “Refúgio de Padre Hurtado”. Eu não sabia se ele estava me entendendo ou não, que história era aquela de refúgio, padre. Ele me garantiu que no refúgio havia outros viajantes de mochila, e que eu não ia ser obrigado a entrar para nenhuma seita.

Bom, peguei o ônibus, segui a indicação e fui até o refúgio. Nesta altura dos acontecimentos já havia anoitecido, e eu pessoalmente não gosto de perambular à noite por uma cidade grande desconhecida, com uma bike e mochila chamando a atenção. De qualquer forma cheguei fácil até o refúgio, todos a quem perguntava sabiam o caminho. Só faltava aquilo, o “Refúgio de Padre Hurtado” era um abrigo para indigentes idosos. O rapaz que estava na recepção quase caiu para trás quando eu perguntei se podia dormir lá.

Ainda tentamos mais uma vez os meus números de telefone, mas não adiantou. O jeito foi dormir lá mesmo. Foi um choque. Sair de casa e cair naquele lugar. Agora sim, com certeza estava viajando, estava acontecendo algo totalmente diferente do que eu imaginara. Havia pelo menos vinte pessoas em cada dormitório, mas ainda havia camas sobrando. O zelador me indicou uma delas.

Havia muitos barulhos, uns tossiam, outros se mexiam nas camas, que rangiam, outros gemiam. No corredor havia mais barulho ainda, gente andando arrastando os pés, gente falando sozinha, e até um gritando, e ficou gritando palavrões boa parte da noite. Ninguém parecia se incomodar com nada. De vez em quando o zelador trazia mais alguém até alguma cama e o ajudava a se deitar.

Demorei a cair no sono apesar de estar super cansado. Havia sido um dia longo, com um final mais longo ainda, e eu tentava digerir tudo isso e entrar em sintonia com um novo ritmo de vida, imprevisível e diferente, todos os dias dali para a frente.

No dia seguinte saí cedo a procura de um lugar razoável para dormir e aprendi que “hospedaje” não era tão caro assim, e encontrei uma por 10 dólares. Tinha um quarto só para mim, até que não estava mal. Dormi a manhã toda e à tarde saí para comprar as últimas coisas de que necessitava.

Santiago é uma cidade agradável, e foi fácil encontrar as lojas que procurava, estavam inclusive na mesma rua, Calle 18. Precisava de uma ferramenta para desmontar o pinhão (catracas) da roda traseira. Não tinha encontrado a ferramenta ideal em São Paulo, que em inglês se chama “Hyper Cracker”. Em português ela nem tem um nome específico. O pinhão necessita de várias ferramentas combinadas para desmontá-lo, a menos que você tenha esse “Hyper Cracker”. Eu queria encontrar a tal ferramenta pois queria evitar carregar coisas em excesso. Mas não adiantou, o pessoal nem conhecia o tal do “Hyper Cracker”. Em relação a equipamentos mais normais, havia uma grande variedade de acessórios e peças. Resolvi esquecer o maldito “Hyper Cracker”, afinal eu só iria precisar dele no caso de algum raio traseiro do lado direito (o lado das engrenagens) quebrar. Se isso acontecesse eu iria precisar pegar uma carona até a oficina mais próxima e improvisar algo.

Eu também precisava de um adaptador de entrada para fone de ouvido, que convertesse sinais mono para sinais estéreo. Esse adaptador é do tamanho de uma tampa de caneta Bic e era de vital importância. Eu tinha pego junto a Rádio Eldorado de São Paulo um gravador com o qual pretendia gravar uns boletins que viriam ao ar no programa “Esporte-Aventura”. Esse gravador também serviria de walkman, e por isso precisava do adaptador, para poder ouvir música em ambos os ouvidos.

Eu estava mesmo com sorte, havia um monte de lojas de equipamentos eletrônicos ao lado das lojas de bike, e não foi difícil encontrar o adaptador.

Faltava-me agora comprar mapas dos parques nacionais que iria visitar, e fui até o I.G.M. (Instituto Geográfico Militar) procurá-los. Os mapas do I.G.M. são muito bons, e tem informações bem precisas sobre o relevo dos parques. Apesar disto, não indicam as trilhas existentes e é necessário colocá-las no mapa à mão para facilitar a orientação (pode-se fazer isso baseando-se em outro mapa que contenha as trilhas).

Dei azar, era sábado e o escritório estava fechado. Desisti também dos mapas pois no meu livro já havia uns mapas básicos dos parques. Se achasse necessário iria procurar outros melhores depois.

Passei o resto da tarde explorando a cidade. Essa é outra vantagem de se viajar de bike, tinha chegado à noite anterior trazendo meu próprio veículo, e podia me locomover livremente com uma facilidade incrível.

Mas o meu destino era a Patagônia e por isso na manhã seguinte já tinha colocado a minha bike no bagageiro de um ônibus e estava a caminho de Puerto Montt, no extremo norte da Patagônia.

Durante a viagem no Chile iria pegar vários ônibus para cobrir distâncias grandes através de áreas que não me interessavam. Colocava a bike em pé dentro do bagageiro do ônibus (basta retirar a roda traseira) e a amarrava com uma cordinha. Normalmente tinha que pagar aproximadamente 5 dólares pelo transporte da bike mas às vezes o motorista nem se preocupava com isso e a bike viajava de graça.

3 - Puerto Montt

Foram 12 horas de ônibus até Puerto Montt. A estrada era razoavelmente plana, asfaltada e com muitos carros. O tipo de lugar onde não me interessava pedalar. Não gosto de estradas de asfalto, nelas me dá vontade de ir rápido, os carros passam o tempo todo em alta velocidade me fazendo sentir como uma tartaruga. Além disto, os carros fazem barulho, me assustam e roubam aquela sensação de contato com a natureza . Ou seja, quanto mais isolada e primitiva for a estrada, maiores são as emoções ao pedalar nela.

Nas estradas de terra há poucos carros e é mais emocionante pedalar. É necessário negociar com o caminho, buscar a melhor trilha para a bike, com menos buracos. Isso ocupa bastante a mente, e as descidas se transformam em uma aventura de verdade pois se você for rápido demais ou não conseguir evitar um buraco maior, pode levar um tombo e se machucar, o que não é muito agradável, especialmente se você estiver sozinho em uma estrada com pouco movimento.

As condições da estrada variam o tempo todo, às vezes o caminho parece até asfalto de tão bom, e às vezes é péssimo e você acaba quase se arrependendo de estar ali fazendo aquele “programa de índio”. Se chover então, pior ainda, a estrada pode ficar péssima.

Mas estes momentos ruins passam rápido, e servem para contrastar e aumentar a alegria dos momentos bons, e gerar uma incontrolável vontade de “quero mais”. Viajar de bike vicia, mas também é uma atividade que você ama ou detesta. Se a idéia te parece um pouco tentadora, é bem provável que você se apaixone irremediavelmente, e com pouco dinheiro possa realizar muitas viagens.

Bom, voltando ao assunto, Puerto Montt é uma cidade portuária com 110.000 habitantes e um lugar exótico para quem está chegando no Chile. há muitas casas de madeira e de telhas de zinco. Nunca havia visto casas de zinco, é realmente muito interessante, é um material leve, fácil de trabalhar e protege a madeira do excesso de umidade. As paredes de algumas casas são totalmente cobertas de zinco.

Puerto Montt serve como base para se explorar a região dos lagos chilenos e também para visitar a Ilha de Chiloé, que na língua dos índios Mapuche que habitam a região, quer dizer “Terra de Gaivotas”. É também de Puerto Montt que saem barcos com destino a Puerto Natales e Punta Arenas, no sul da Patagônia

Tanto na ilha de Chiloé quanto em Puerto Montt, a cultura é intimamente ligada ao mar, e Puerto Montt é famosa pela grande quantidade de restaurantes de frutos do mar. Há também um grande comércio de artesanato, concentrado na zona do porto.

Chegando à cidade fui para uma hospedaje lotada de Israelenses, que sempre encontram os lugares mais baratos para se hospedar. Dividi um quarto com uma sul-africana que havia acabado de voltar da Antártida e me contou sobre a sua viagem . Ela falou que o lugar é simplesmente fantástico, incrivelmente bonito, e que é possível fazer a viagem em barcos da marinha chilena ou em veleiros que levam turistas. Entretanto os preços eram demasiado caros para mim e por isso nem me permiti sonhar com uma esticada até lá.

No dia seguinte fui pesquisar os preços e opções para chegar ao sul da Patagônia. A viagem de barco era a opção mais interessante, demorava três dias e passava bem perto da costa, que é toda recortada por fiordes e tem enormes glaciares que terminam no mar. A paisagem é maravilhosa e intocada pelo homem . Essa viagem é muito popular entre os viajantes, e portanto uma maneira ideal para encontrar pessoas interessantes. A passagem custava 160 dólares, para dividir um dormitório com 25 pessoas, e as refeições estavam incluídas. O destino final era a cidade de Puerto Natales, a apenas 150km do Parque Nacional Torres del Paine.

Apesar disto, optei pelo avião, que custou 100 dólares e me levou até Punta Arenas, 250km mais ao sul de Puerto Natales, e no extremo sul do continente americano. Optei pelo avião pois simplesmente não aguentava mais esperar para começar a pedalar.

No dia seguinte pela manhã cedo peguei o avião. Eu não esperava nada especial deste vôo mas o visual lá de cima foi simplesmente fantástico. Sobrevoamos o Campo de Gelo Sul, a maior concentração de geleiras fora dos Pólos, com uma área de 14.000km quadrados. Eu nunca havia visto geleiras grandes antes, pareciam estradas brancas, azuis, e cinzas cortando as montanhas. Mas é difícil descrever, as dimensões são enormes. Às vezes as geleiras terminam no mar e cobrem uma área enorme com icebergs.

4 - De Punta Arenas a puerto Natales


Punta Arenas é uma cidade portuária com 100.000 habitantes, nas margens do Estreito de Magalhães.

Antes da construção do Canal do Panamá, o único caminho marítimo entre o leste e o oeste dos Estados Unidos passava pelo Cabo Horn ou pelo Estreito de Magalhães, e Punta Arenas foi criada para servir como porto de apoio para os navios que passavam. A cidade teve seu apogeu na segunda metade do século XIX, época da corrida do ouro na Califórnia e também período de intensa expansão no oeste norte americano. Hoje em dia Punta Arenas permanece um importante “cruzamento” de linhas de transporte, tanto marítimo quanto aéreo.

O tempo correspondia às expectativas, estava chovendo e fazia frio quando pousamos. Arrumei uma carona com uma caminhonete que ia até a cidade e fiquei esperando a chuva passar embaixo de um lugar abrigado, enquanto organizava a bagagem na bike.

A bicicleta tinha dois bagageiros, um dianteiro e outro traseiro. Em cada um eu levava dois alforjes (bolsas) pendurados. Em um dos alforjes dianteiros eu levaria, dobrada, a mochila para caminhadas. No outro levaria comida. Nos alforges traseiros iriam as coisas mais pesadas, roupas, panela, fogareiro, equipamento fotográfico. No bagageiro traseiro entre os alforjes, iriam a barraca e o saco de dormir.

Estava quase pronto para sair, mas ainda faltava um monte de coisas. Uma passada no supermercado e fiz compras para 5 dias. Consegui encontrar também um ótimo mapa da Patagônia inteira, ainda por cima plastificado, no centro de informações turísticas. Passei no posto de gasolina e comprei querosene para o meu fogareiro. Fui para a Zona Franca aonde se pode comprar todo o tipo de coisas bem barato e finalmente comprei um par de luvas e um gorro de lã.

Depois dessa maratona de compras, estava realmente pronto. Eram 18:30, mas eu queria finalmente começar a pedalar, e parti. Era fim de Janeiro, dia 28, e haveria luz até as 23:00. Mal podia acreditar, eu estava finalmente pedalando.

A bike estava pesada, ou talvez era eu que ainda não estava acostumado a pedalar com ela carregada. Em São Paulo eu costumava pedalar todos os dias, uma media de vinte quilômetros, mas o esforço para pedalar a bike carregada é muito maior. É normal sofrer um pouco no início de uma viagem, mas com o tempo acaba se acostumando ao esforço Havia mais carros que eu esperava na estrada, e o vento era forte. Não tão forte como eu esperava mas ainda assim era difícil avançar contra ele.

A estrada seguia paralela ao Estreito de Magalhães por alguns quilômetros, e o visual era inspirador. O tempo estava encoberto, mas não choveu. A estrada era asfaltada e seria assim até Puerto Natales, 250km ao norte. Era bom ter asfalto no começo da viagem, tornava as coisas mais fáceis. O terreno era razoavelmente plano e eu estava cheio de vontade de pedalar.

Pedalei três horas e fiz 52km, o tempo passou super rápido. Parei para acampar às 21:30, na beira de um lago, que na realidade era um braço de mar. Armei a barraca e cozinhei um belo macarrão com atum. Estava esfomeado pois nem tinha almoçado com toda a correria da partida.

Depois de comer pude finalmente relaxar. As nuvens vinham do oeste e passavam baixas no céu, querendo chover. Podia escutar o barulho de pequenas ondas que quebravam na margem do “lago”. O vento havia acalmado e a barraca não sacudia, e fui dormir ouvindo o barulhinho das ondas.

Na manhã seguinte o tempo amanheceu mais encoberto ainda. Tomei o meu café da manhã, que ia ser o mesmo pelos próximos três meses, uma panelada de cereais com leite quente, uma delícia, nunca me enjoei dele, e podia pedalar por três horas antes de sentir fome de novo. O tempo estava feio e começou a garoar, foi o que faltava para me convencer a voltar para a cama. Dormi como um bebê até o meio dia e acordei bem na hora, a chuva estava acabando.

O vento estava muito mais forte do que no dia anterior, e logicamente soprava bem no nariz. Apesar de a estrada ser praticamente plana eu só conseguia pedalar a 6km por hora, uma velocidade ridícula.

Para piorar as coisas começou a chover de novo. A chuva era bem leve e não incomodava muito. O problema é que eu precisava colocar a calça e jaquetas impermeáveis, e depois de 10 minutos estava morrendo de calor. As nuvens passavam rápido e a chuva parava e reiniciava a cada meia hora. Eu parava o tempo todo para por ou tirar roupas conforme o tempo mudava e eu tinha frio ou calor. Também me atrapalhei todo tentando tirar fotos do início da viagem e fazer boletins para a Rádio Eldorado. Era uma quantidade exagerada de equipamentos e roupas para administrar. Eu lembrava das minhas viagens de bike pelo Brasil, em como era simples, duas camisetas, nada de blusas ou roupas para chuva, e em cada rio uma piscina para tomar banho.

Bom, o vento continuava a assobiar na minha orelha e eu não podia nem ouvir música por causa do barulho. Para aumentar a minha felicidade, o meu joelho começou a doer. A chuva voltou a cair, o tempo demorava a passar, os quilômetros percorridos praticamente não aumentavam, e a inevitável pergunta me invadiu, “O que é que eu estou fazendo aqui?”.

Eu me perguntava se seria possível que o tempo ficasse sempre daquele jeito, e se ficasse , o que eu iria fazer. Seria estupidez insistir em pedalar se o tempo fosse sempre tão ruim, afinal eu estava ali para me divertir e não para sofrer. Tentei me acalmar pensando que todo começo é difícil, em qualquer atividade, e que mais cedo ou mais tarde as coisas iriam melhorar.

Depois de 4 horas nestas condições, a estrada virou para a direita (oeste), e eu tinha de repente o meu grande inimigo, o vento, a meu favor. Silêncio total, eu não escutava mais nada de vento pois estava pedalando na mesma direção, a 27km por hora. Incrível como o astral pode mudar tão rápido, até a chuva havia parado, e de repente tudo estava perfeito.

Estava me aproximando de um povoado minúsculo e resolvi parar em um botecozinho para tomar alguma coisa quente. Foi bom estar entre quatro paredes, abrigado do frio e do vento. Eu era o único cliente no bar, mas logo chegou um ônibus lotado de turistas e acabou com o sossego. Os turistas eram alemães e não falavam espanhol nem inglês. Coitado do dono do bar, as pessoas falavam todas ao mesmo tempo e ninguém se entendia. O tempo foi passando e alguns começaram a gritar os seus pedidos achando que assim seriam entendidos.

Eu tentei ajudar mas as pessoas estavam quase histéricas, foi bem estranho, afinal não é difícil pedir um chá, café ou chocolate quente. As palavras são até parecidas, mesmo em línguas diferentes.

Resolvi voltar para a minha estrada, um pouco confuso pela cena no bar. Parei na saída do vilarejo para bater uma foto da bike com as casas ao fundo, e enquanto me afastava para bater a foto, o vento derrubou a bike, que caiu por cima do capacete rachando-o.

Não conseguia acreditar. Porque inventei de parar naquele lugarzinho estranho, bem na hora que o vento estava a meu favor! Guardei o capacete, pois mesmo rachado ele ainda podia servir de proteção, e voltei a pedalar, desta vez com o walkman ligado. Agora sim, tudo estava perfeito, o céu estava limpando e eu estava indo super rápido. Pedalei por mais uma hora e pouco e recuperei a minha média, fechando o dia com 81km feitos em 6 horas de pedal.

Parei para acampar atrás de uma pequena montanha que me protegia do vento, e tive a companhia de uns cavalos que pastavam do outro lado de uma cerca e vieram ver de perto o que estava acontecendo.

Não havia nenhum rio por perto e por isso fui até a estrada para parar um carro. O primeiro para quem fiz sinal parou, era uma família chilena com duas crianças pequenas e foram muito simpáticos. Me deram a água que eu necessitava e foram embora depois de uma conversa rápida.

No dia seguinte eu sentia uma leve dor nas pernas, mas era normal pois estava me acostumando ao ritmo da viagem. O que não era normal era a dor que comecei a sentir nos joelhos, a cada pedalada ela parecia aumentar. Já tinha feito 130km e faltavam ainda 120 para Puerto Natales onde estava planejando descansar e talvez até visitar um médico se a dor continuasse a aumentar.

Durante o dia a dor continuou a aumentar e eu não conseguia mais manter um ritmo razoável, estava se tornando difícil pedalar. O vento não estava muito forte mas mesmo assim eu estava sofrendo para avançar.

Eu pensava que talvez fosse melhor pegar uma carona para não forçar demais o joelho. Poderia descansar em Natales até me recuperar. Mas tinha medo que isso demorasse, e eu não tinha dinheiro ou tempo para ficar parado, pagando hospedaje, esperando a dor passar, e de novo comecei a duvidar que poderia continuar a viagem. Me sentia péssimo, seria ridículo desistir logo no começo.

Fiquei até a tarde com esses pensamentos na cabeça, e parei mais cedo para descansar. Já havia feito 64km e poderia chegar em Natales com calma no dia seguinte.

Estava me aproximando de um rio, e havia placas indicando que era um bom local para pescar. Seria uma boa oportunidade para testar o meu talento de pescador e ao mesmo tempo desviar o pensamento do meu problema no joelho. O local era lindo. Havia uma floresta de Lenga, uma espécie de pinheiro com tronco e galhos torcidos, como que moldados pela força do vento. As florestas de Lenga nunca são demasiado espessas e é possível caminhar entre as árvores sem problemas. O chão era coberto de capim alto, que as vezes chegava à altura da cintura. O céu estava limpo e a luz do sol penetrava através das árvores realçando o verde do capim. Era um colorido bem delicado, verde claro da grama e das copas das árvores, que de vez em quando deixavam espaço para o azul do céu.

Este pequeno paraíso tinha dono, e fui pedir permissão para acampar e pescar nas suas terras. Ele estava cuidando dos cavalos e não ficou surpreso em me ver. O que eu não sabia ainda é que a Patagônia é muito frequentada por ciclistas do mundo todo, e por isso as pessoas reagem com naturalidade ao serem abordadas.

Ele me indicou o melhor lugar para acampar e me recomendou cuidado caso fosse fazer uma fogueira.

Os incêndios florestais são um grave problema na Patagônia, pois no verão é muito seco e no chão das florestas há grande quantidade de madeira. Como o mato não é muito denso, o vento circula livre espalhando o fogo rapidamente. As estatísticas mostram que a maioria dos incêndios são provocados por turistas descuidados.

Antes de montar a barraca eu queria pescar, estava curioso para saber se as coisas podiam ser tão ideais como eu pensava. Eu já estava viajando de uma maneira maravilhosa (vamos esquecer a dor no joelho um pouquinho). Se além disto eu pudesse pescar peixes para o jantar, era bem provável que eu me transformasse para sempre em um ciclista nômade.

Cheguei ao rio, aliás, Rio Rubens, para ser mais preciso. Procurei pelo melhor local, as trutas gostam de ficar nos poços profundos que se formam nas curvas dos rios, e eu logo achei um. Selecionei uma isca tipo colher, coloquei na linha e fiz o lançamento. Engraçado, não via a isca cair na água. Lógico que não, ela estava enroscada na minha calça. Bom, tudo bem, vamos tentar de novo, desta vez com um movimento mais aberto. Cadê a isca? De novo caída aos meus pés, o que foi desta vez? Acontece que eu estava lançando a isca contra o vento, que estava bem forte no fim da tarde. A isca era leve demais e por isso não ia longe. Troquei a isca, colocando a mais pesada que tinha. Agora sim, consegui fazer os lançamentos bem no meio do rio, corrente acima.

Fiquei aperfeiçoando os meus lançamentos. É bem simples, a técnica é lançar longe e recolher a linha lentamente, até fisgar alguma coisa. Eu não sabia ainda, mas o horário para pescar trutas é muito importante, elas não gostam de muita luz e são muito mais fáceis de serem apanhadas quando o sol está se pondo ou nascendo. Havia peixes no rio, inclusive dava para ver uns peixinhos pequenos que saltavam o tempo todo. Eu lançava a isca exatamente aonde eles estavam na esperança de fisgar alguma coisa maior.

De repente, havia algo no meu anzol. Comecei a recolher a linha rapidamente até que ficou muito pesado para a carretilha, que começou a “patinar”. Dei um tranco e senti que havia fisgado algo bem pesado. Não, não era uma bota velha, era apenas um galho. Não desisti, continuei tentando até que fisguei algo bem mais pesado no fundo do rio e arrebentei a linha, perdendo a única isca pesada o suficiente para aquele vento.

O jeito foi desistir, teria que conversar com alguém para saber direito como pescar. Quando fui comprar o equipamento em São Paulo o vendedor estava muito seguro em relação às iscas que eu precisaria, me vendeu umas incríveis, idênticas a sapinhos, baratas, grilos, fora as iscas de “colher” e “mosca”. Cada uma deveria enganar o peixe de maneira diferente e era adequada a uma situação especifica. Mas todas elas eram leves demais para a Patagônia, eu precisava de iscas mais pesadas ou então teria que arremessar a favor do vento.

Bom, me resignei em comer o tradicional macarrão com atum, fiz uma bela fogueira e me pus a pensar na vida e na viagem que estava fazendo.

Realmente não havia muitas opções de coisas para se fazer, e quase toda a minha energia estava voltada para a realização das tarefas necessárias para a execução da viagem. Era uma rotina diferente da que eu levava na cidade, muito mais básica, mas com grandes desafios e recompensas. Era duro lutar contra o vento e ter que pedalar para avançar. Também era cansativo ter que montar acampamento todas as noites e arrumar o equipamento todas as manhãs, mas esse era o preço que tinha que pagar para usufruir daquela liberdade, a total imersão em uma natureza praticamente intocada. Era muito bom estar ali, na beira de uma fogueira, no meio do mato, com um lindo rio a 20 metros de distância. A minha felicidade era composta por poucas coisas, mas essas coisas se combinavam de infinitas maneiras diferentes, e sempre era possível se surpreender com a beleza, pureza, e força da natureza .

Frequentemente eu era invadido por uma profunda calma e sensação de plenitude, uma convicção de que a vida e a felicidade são coisas bem simples. Incrível como podia facilmente sentir isso em meio à natureza . Me lembrava dos meus dias em São Paulo, a eterna correria, que nos envolve até no lazer, um lazer muitas vezes feito de forma neurótica, consumista, como se tivéssemos que conquistar a felicidade para toda a vida em uma única noite.

Esse não era só o meu caso, talvez isso fosse mais verdadeiro para outras pessoas. Qualquer um pode sair à noite e ver a quantidade de gente que literalmente se esborracha em postes por estar bêbado, correndo atrás de satisfação, uma satisfação que não persiste.

O que persiste é a sensação de que está faltando alguma coisa. Aonde é que esta coisa vai ser encontrada? É difícil dizer, cada um tem uma resposta, mas de uma coisa eu tenho certeza, a maneira neurótica como vivemos nas grandes cidades não nos ajuda a perceber aonde está a verdade ou a essência das coisas.

Cada um procura inspiração em uma fonte diferente, para mim ela vem no contato com a Natureza e os elementos. Isso é tão claro para mim que eu Frequentemente pensava em como ia ser bom se toda a estrutura excessivamente artificial que o Homem criou desaparecesse.

Nada de luz elétrica, computadores, carros, aviões, fábricas, escolas, governos, medicina, química, bolsa de valores, favelas, plástico, lixo, polícia. A lista é enorme. Se o homem pudesse negociar a sua sobrevivência apenas com a natureza, tudo seria melhor, e o mundo funcionaria conforme uma lógica mais simples, ao invés de ser um caos total aonde a irracionalidade e interesses mesquinhos prevalecem, ao custo de um planeta que vem sendo destruído e ao custo de milhões de vidas de pessoas que passam por necessidades e dificilmente podem alterar os seus destinos.

Mas o Homem inventou o dinheiro, e todo um universo relacionado a ele. Hoje em dia não podemos mais ir ao rio e pescar o nosso jantar, e nem cortar uma árvore para construir a nossa casa. Temos que trabalhar em uma fábrica ou em um escritório o mês inteiro, e obter a grana, que nos dá a liberdade e condição de sobreviver neste mundo artificial, que nos distanciou do nosso estado natural.

Somos animais, viemos da natureza e pertencemos a ela, que deveria ser a coisa mais preciosa para nós. Será que valeu a pena todo este trabalho para criar todas essas coisas?

Agora é tarde demais, as nossas invenções já estão aí, o mundo está super povoado de pessoas e é impossível voltar a um estilo de vida mais primitivo. Mas ainda está ao nosso alcance reeducar o uso da tecnologia e rever os nossos valores e prioridades. Temos a tecnologia e poder de comunicação para trocar idéias e conversar, temos os números e jornais que nos mostram claramente que estamos nos destruindo, em um ritmo cada vez mais acelerado.

Temos que fazer algo realmente, não basta mais ficar reconhecendo os problemas, temos que agir, não há tempo para ser desperdiçado. O que eu posso fazer? A única coisa que me vem em mente é escrever, e torcer para que faça alguma diferença.

Pois é, vejam só quantas coisas é possível enxergar olhando para as chamas de uma simples fogueira.

No dia seguinte levantei acampamento às 11 horas pois a manhã inteira esteve chovendo. Quando estava entrando na estrada encontrei um casal de ciclistas parado na beira da estrada. Eles estavam indo na mesma direção que eu. Eram o Cris e a Jeanine, suíços, que estavam pedalando na América do sul a quatro meses. Eles eram super simpáticos e continuamos a pedalar juntos em fila indiana, para ter menos problemas com o vento.

Eu não conseguia me posicionar de maneira adequada para me proteger do vento e também estava louco para conversar com alguém, por isso ficava mudando de posição e conversando com os dois.

Cris era mecânico de bicicletas e já havia feito outras viagens de bike. Jeanine era secretária de alguém no ministério dos esportes na Suíça. Era a primeira viagem dela em uma bicicleta. Eles já haviam pedalado algo como 3000 km, um sinal de que ela havia se adaptado muito bem à vida em duas rodas.

Fiz uma maravilhosa descoberta nesta manhã, o meu joelho não doía nada se eu o mantinha aquecido. Fiz essa descoberta por acaso. Eu sempre pedalava de calças curtas e não sentia frio. Apesar disto, o vento era bem gelado e estava resfriando os tendões e ligamentos do joelho. Nesta manhã pedalei com as calças impermeáveis, que esquentavam bastante, e a dor desapareceu por completo.

Comentei a descoberta com os suíços e para a minha surpresa eles também estavam tendo o mesmo problema. Combinamos de procurar umas joelheiras ou algo parecido quando chegássemos em Puerto Natales.

Estávamos quase chegando em Natales e o Cris me perguntou se eu gostaria de tomar um mate. Mate é o chimarrão na Patagônia, só que a erva utilizada por eles é menos forte e amarga que a erva que usamos no Brasil. Eu não sou muito fã de mate, ou chimarrão se você preferir, mas naquele frio qualquer bebida quente cairia muito bem.

O que eu não entendia era a pressa em tomar algo. Afinal de contas estávamos quase chegando em Natales, faltavam 15km com muita descida, não compensava parar, montar o fogareiro, ferver a água, etc., seria muito trabalho.

Mas o Cris tinha uma solução para estes problemas. Estávamos chegando a um posto policial e segundo o Cris eles certamente teriam água quente. Eu achei a idéia ótima, se ela funcionasse. Eles me contaram que frequentemente faziam isto, simplesmente paravam nas fazendas ou qualquer lugar habitado e pediam água para um mate. As pessoas se surpreendiam um pouco com dois ciclistas gringos falando espanhol, mas eram sempre super hospitaleiras.

Além de pedir água quente, Cris e Jeanine às vezes pediam para usar o forno para fazer pão. O irmão do Cris era padeiro e o havia ensinado a fazer um ótimo pão integral. Isso surpreendia os fazendeiros mais ainda, mas todos saiam ganhando. Os fazendeiros conheciam um pouco sobre a Suíça, tinham um pouco de companhia para quebrar a solidão, e ganhavam um pão delicioso. Além de aprender a receita, é claro. Já Cris e Jeanine conseguiam fazer o seu pão, e tinham uma ótima oportunidade de conhecer bem de perto a cultura gaúcha e praticar Espanhol, que aliás já falavam bastante bem.

Bom, chegando ao posto policial eu esperei que Cris fizesse os contatos. Não é que funcionou mesmo? Entramos e fomos levados a uma sala aonde nos sentamos em um sofá. A água foi posta para ferver enquanto nós conversávamos com um dos policiais. Aquele posto policial servia de polícia fronteiriça, pois naquele ponto a estrada se bifurcava e levava à Argentina, a apenas 17km de distância. Na minha opinião havia policiais demais, algo como oito, para cuidar de uma estrada aonde havia pouquíssimo movimento. De qualquer forma tomamos o mate, que desceu muito bem, e continuamos o nosso caminho.

Assim que começamos a pedalar começou a chover, a primeira chuva de verdade que vi até então. Nas outras vezes as chuvas foram muito leves, uma garoa fina, sempre acompanhada de muito vento que acabava me secando na medida em que me molhava, ou seja, eu praticamente não me molhava. Bom, agora era diferente, o vento estava leve e a chuva grossa. Paramos para colocar as nossas roupas impermeáveis, e eu fiz a segunda descoberta do dia. Só que foi uma descoberta desagradável; A minha jaqueta e calças “impermeáveis” não eram tão impermeáveis assim. Seguravam a chuva por cinco minutos e aí eu já começava a sentir a água me molhando. Isso era mal pois eu estava levando um número mínimo de peças de roupa e era fundamental ter as roupas de baixo secas quando eu parasse, pois só tinha uma blusa que esquentava bem. Enquanto estava pedalando eu não tinha problemas com o frio mas era vital me agasalhar bem quando parasse. Desta vez não ia ser problema pois estávamos chegando na cidade e teríamos abrigo, mas eu tinha imaginado que estas roupas iam me possibilitar pedalar debaixo de chuva, o que não era verdade, e isso me tornava dependente de bom tempo para poder pedalar.

Comentei o assunto com Cris, que me disse que tinha o mesmo problema. A verdade é que a maioria dos materiais “impermeáveis” perdem a sua impermeabilidade depois de um certo tempo, especialmente se lavados com sabão que não seja de PH neutro ou se lavados com certa violência, com escova ou sendo centrifugados. Esse não era o nosso caso, aliás eu até evitava lavar a jaqueta exatamente para não ter esse tipo de problema.

Para uma roupa ser realmente impermeável ela deve ser feita de borracha ou de nylon resinado. O problema com este tipo de material é que eles não permitem a evaporação da transpiração e a pessoa acaba se molhando com o próprio suor. Cada pessoa deve definir as suas prioridades. Os materiais impermeáveis que permitem a evaporação da transpiração são muito bons contra o vento e neve, além de serem leves e práticos, mas não oferecem proteção total contra a chuva e exigem cuidados especiais na lavagem.

Continuamos a nos molhar com a chuva, mas descíamos bem rápido e podíamos ver a cidade perfeitamente.

5 - Em Puerto Natales

Puerto Natales fica nas margens de um braço de mar chamado Seno Última Esperanza. Aliás Última Esperanza também é o nome da província, ou estado, onde estávamos. Nomes bem sugestivos, e o visual correspondia à imaginação. Do outro lado do Seno, que tem aproximadamente 2km de largura, havia montanhas altas com os picos cobertos de neve. Naquele exato momento estava nevando lá em cima, pois a chuva aqui embaixo era neve em altitudes mais elevadas.

Natales é bem pequena, com apenas 8.000 habitantes, e não havia nenhum sinal de presença humana fora dos limites da cidade. O tempo chuvoso contribuía para dar um ar mais sombrio ainda ao lugar, mas isso só aumentou a minha animação. Eu estava no lugar certo, fazendo a coisa certa, e apesar do vento, chuva e dor no joelho, tinha conseguido percorrer 250km, o que queria dizer que eu conseguiria fazer quantos quilômetros eu me propusesse a fazer.

Não havia ninguém na rua por causa da chuva e fomos diretamente até a casa de informações turísticas, perguntar por algum hotel ou “hospedaje” barato.

Estávamos de volta a civilização, havia aquecimento na casa. Incrível como é gostoso ter quatro paredes te isolando da chuva e do frio. Ficamos nos esquentando por um bom tempo, até que a chuva diminuiu e fomos até a Hospedaje Casa Cecilia, a apenas dois quarteirões de distância.

Havia um enorme movimento na hospedaje, eu não conseguia entender de onde tinham saído tantos turistas, suíços, alemães, franceses, e até um grupo de três brasileiros! Tivemos até um pouco de dificuldade para conseguir um quarto.

Depois de um maravilhoso banho quente e uma sopinha, fui me encontrar de novo com o Cris e a Jeanine, que tiveram que pegar um quarto em uma outra pensão que pertencia à mesma dona.

Os preparativos para o almoço já estavam a pleno vapor, fiquei impressionado com a quantidade de equipamento que eles carregavam. Eles tinham uma pequena pasta que continha vários tipos de tempero, inclusive óleo e vinagre, coisas que são difíceis de levar em uma bike pois podem vazar. Eles estavam fazendo uma salada enorme e um prato de macarrão maior ainda. Uma garrafa de vinho já tinha sido trazida por um francês, e a conversa rolava solta.

Incrível o quão rápido nossa situação mudou. Apenas duas horas atrás estávamos pedalando na chuva e no frio, sozinhos, sem imaginar quantos viajantes havia tão perto de nós. Para mim foi uma grande surpresa, eu achava que a Patagônia seria um lugar difícil de se viajar e que haveria pouco turismo ali. Entretanto, as hospedajes estavam lotadas. Janeiro é alta temporada na Patagônia. Puerto Natales é o ponto de partida para se visitar o Parque Nacional Torres del Paine, o mais famoso no Chile e talvez na América do Sul também . Todos os dias há ônibus que vão e voltam ao parque , que se localiza a 150km ao norte de Puerto Natales. O resultado disto é que todos os dias conhecíamos novas pessoas, e passávamos horas matando a nossa fome de conversar.

O tempo estava péssimo, choveu três dias seguidos, chegamos exatamente na hora certa. Usamos o tempo para descansar, comer bem, e fazer umas joelheiras para nos proteger do frio. Encontramos uma senhora que fazia blusas com lã de carneiro, e encomendamos umas joelheiras com ela. Foi uma ótima idéia pois nunca mais tivemos problemas com o frio ou dor.

No mesmo dia em que chegamos a Natales, chegaram outros quatro ciclistas. Dois alemães que já haviam encontrado os suíços antes pela estrada, e mais um argentino, e um americano. Eu mal podia acreditar, parecia até que a grande moda era pedalar na Patagônia. Na realidade o que acontece é que aquela era a melhor época para se pedalar por ali, e por isso havia aquela concentração de ciclistas.

Era curioso como cada ciclista tinha seu estilo próprio e uma história diferente. O argentino era o “hippie” da turma, cabelo e barba enormes, o equipamento todo remendado, e era quem mais pedalava, Tinha, como ele dizia, “fome de comer estrada”, e partiu no dia seguinte ao que chegou, junto com o americano. O americano era bem reservado e não deu para saber muito dele.

Os Alemães estavam iniciando a viagem deles e, como eu, tinham três meses para pedalar. Apesar disto tinham uma grande distância para percorrer e uma data certa para chegar a Quito, no Equador, a não sei quantos mil quilômetros mais ao norte. Eles teriam que pegar carona ou ônibus para cobrir algumas partes do percurso. Estavam com pressa e também saíram no dia seguinte.

Eu não saí até que o tempo melhorou, e pude ver as marcas dos pneus deles na lama durante os 100km até o Parque Torres del Paine. Com certeza eles sofreram bastante na chuva, mas nunca soube dos detalhes pois nunca os reencontrei. Acho que eles nem ficaram no Parque pois se o tivessem feito, eu os teria encontrado.

Assim que o tempo melhorou eu me preparei para partir, e comprei uma capa de chuva de verdade, daquelas amarelas emborrachadas. Não queria arriscar passar frio em caso de chuva. Ia deixar os suíços para trás, eles estavam curtindo passar o dia todo jogando conversa fora, mas eu achava que as conversas estavam começando a se repetir demais, já havia contado a minha viagem e ouvido as dos outros centenas de vezes, e estava começando sentir “fome de estrada” de novo.

Fiz compras suficientes para 15 dias, pois no parque Torres del Paine só havia um armazém que cobrava preços bem caros e não tinha muitas coisas. Seguindo o exemplo dos suíços encrementei a minha cozinha com três caixinhas de filme fotográfico contendo temperos como curry, noz moscada e canela. Também levei “Aji chileno”, um molho de pimenta bastante semelhante a chili.

Além das novidades, comprei também o tradicional. Para o café da manhã musli, que na realidade não existia. Eu comprava aveia e misturava com uvas passas, leite em pó e canela, era uma delícia. Todas as manhãs comia uma panelada e podia pedalar até uma da tarde sem sentir fome. Na hora do almoço comia pão. Acabei até aprendendo a receita dos suíços e fazendo o meu próprio pão para este trecho. Levava queijo, salame, e um delicioso doce de leite para passar no pão. Um chocolatinho fazia a sobremesa, e para beber levava suco tipo “Tang”, que por sinal era muito bom. Para o jantar levava macarrão ou purê de batatas desidratado, e carne de soja desidratada. Para fazer molho para o macarrão usava sopas tipo “Maggi”, e assim podia sempre fazer uma combinação diferente destes ingredientes, nunca me enjoando do que comia. Vale lembrar que com a fome que sentia no fim do dia, comeria até macarrão sem molho nenhum. Eu levava ainda cebola, alho e cenouras. Não levava nada de frutas pois ocupavam muito espaço e são difíceis de conservar sem amassar.

Demorei um bom tempo para colocar todos os mantimentos na bike, que ficou mais pesada do que nunca. Depois de comprar querosene para o fogareiro estava finalmente pronto e fui me despedir dos suíços, mas no caminho arrebentaram dois aros da roda traseira. Saco, já era de tarde e eu não aguentava mais ficar em Natales. Fui empurrando a bike até a hospedaje dos suíços para que Cris me ajudasse. Os raios quebraram no lado direito da roda, ou seja, o lado difícil de arrumar sem a ferramenta adequada, o famoso “Hyper Cracker” que eu não conseguira comprar em Santiago.

O Cris tinha a ferramenta e arrumamos a bike rapidinho. Passei em uma bicicletaria e comprei mais alguns raios de reserva pois agora a bike estava mais carregada e a estrada seria de terra.

Finalmente estava de volta à estrada, às 18:30, o mesmo horário que eu saíra de Punta Arenas.

6 - De Natales a Torres del Paine


De Natales até o Parque Torres del Paine deveriam ser algo como 100/150km, não sabia com certeza pois estava seguindo uma estrada que não estava aberta ao tráfego normal e nem constava nos mapas. A estrada ligava Natales a fazendas e depois seguia até o Parque, mas não havia pontes e por isso ela estava fechada para o trafego de veículos convencionais.

Mas esta estrada era 50km mais curta que a estrada normal e passava por uma área muito mais bonita e interessante. Quem me deu essas informações foi o Cris, que por sua vez tinha ouvido falar dela através de seu irmão, que havia feito aquela viagem alguns anos atrás. Só não sabíamos se a distância era de 100 ou 150km, mas sabíamos que os rios sem ponte eram pequenos e “atravessáveis”.

O tempo estava encoberto e ameaçando chover, mas se manteve seco. Estava pedalando em um vale estreito, com montanhas cobertas de neve à minha volta. A estrada era de terra e não havia nenhum carro. Eu estava sozinho de novo e a sensação era ótima, parece que a aventura aumenta quando se está sozinho.

Havia alguma coisa estranha no ar e demorei a perceber o que era. É que não havia nada de vento, e o silêncio era total quando eu parava de pedalar. Era a primeira vez que isso acontecia e o silêncio dava uma aparência diferente à paisagem, a fazia parecer delicada e misteriosa, até mesmo um pouco ameaçadora por causa das nuvens baixas.

Era muito bom perceber essas coisas, a natureza estava sempre se renovando e me impressionando de uma maneira diferente, bonita e inesperada. Às vezes a diferença era sutil, outras vezes mais forte e dramática.

Depois de três horas de pedalada e 40km percorridos, parei para acampar na beira de um riozinho, sobre o qual havia uma ponte. Somente perto do Parque é que os rios seriam sem ponte. Achei lenha para uma fogueira e depois de jantar ainda fiquei curtindo o silêncio daquela noite meio sombria na beira do fogo.

Na manhã seguinte, para minha surpresa, o céu amanheceu limpo e o vento estava praticamente ausente. Comecei a pedalar com vontade e após 10km parei para observar melhor o horizonte à minha frente. Eu podia ver, a uma grande distância, umas montanhas com formas bem estranhas e recortadas. Elas aparentavam ser pequenas mas eu sabia que era o efeito da distância, pois aquelas deveriam ser as famosas Torres del Paine, vistas à uma distância de aproximadamente 60km. Elas estavam cobertas de neve e por isso eram tão fáceis de perceber em contraste com as colinas que as rodeiam.

A estrada era bastante plana e eu consegui manter uma boa velocidade, logo chegando às margens de um lago de águas azuis bem claras.

Continuei a pedalar e logo encontrei o primeiro rio sem ponte. Ele era pequeno e passei no embalo, o fundo era plano e foi fácil de atravessar. Do outro lado do rio havia um rebanho de vacas, que ao me verem em meu cavalo metálico ficaram assustadas. Elas estavam acostumadas a ver cavalos de carne e não de ferro, e fugiram em disparada.

As vacas não fugiam para longe da estrada, apenas corriam uns 500m pela beira dela e ficavam me esperando, para depois correr de novo. Eu tentava ultrapassá-las mas não conseguia, e ficamos brincando de pega-pega por um bom tempo.

Finalmente elas cansaram da brincadeira e me deixaram ultrapassar. Logo em seguida encontrei um portão, que precedia uma ponte sobre um rio bem grande. “É isso, estou entrando no parque”, pensei. Segundo o meu mapa o parque se iniciava logo após um grande rio. Mas eu estava enganado, ainda tive que pedalar mais uns 20km até chegar ao “Rio Grande”, que marcava a fronteira do parque. O terreno agora era cheio de pequenas montanhas bem íngremes e eu tinha que descer para empurrar a bike em muitas das subidas. Podia ver as marcas profundas deixadas pelos ciclistas que vieram antes de mim e ficava imaginando como eles deviam ter sofrido para passar por ali.

Após mais de duas horas nesse sobe e desce, finalmente cheguei a uma espécie de platô e podia ver de novo as Torres. Parecia que nunca ia alcançá-las. Elas estavam bem visíveis mas ainda longe.

Lá pelas 19:30 eu finalmente cheguei ao famoso “Rio Grande”. Na verdade o rio era enorme, e a correnteza era forte. Felizmente havia uma ponte sobre o rio pois ele era demasiado largo e profundo para ser atravessado a pé ou nadando. Armei a minha barraca do lado de fora do Parque, antes do rio, e devorei o jantar rapidamente.

Resolvi tentar de novo a minha sorte como pescador pois tinha visto umas pessoas pescando na ponte. Eu, muito otimista, reuni lenha para a fogueira na qual ia assar a minha primeira truta. Preparei o equipamento de pesca e fui para a ponte, ao lado de um pescador argentino. Ele era jovem mas tinha cara de quem sabia o que estava fazendo, pelo menos o equipamento dele estava bem usado. Ele me falou que o horário era ideal para pescar, as trutas gostam de pouca luz e por isso são mais fáceis de apanhar de manhã cedo ou no fim da tarde. Apesar disto ele estava tentando pescar ali há dois dias e não teve nenhuma sorte.

Estávamos sobre a ponte, de costas para o vento e por isso era fácil lançar a isca na água. Se eu fosse apanhar algo, teria que ser naquela tentativa. Mas o tempo foi passando e a luz foi ficando bem fraca. Às 22:00 o meu companheiro argentino resolveu desistir. Eu resolvi ficar, talvez pudesse contar com um pouco de sorte de principiante.

Assim que ele foi embora uma truta mordeu a isca. Eu senti um tranco na linha e puxei a vara para fisgar o peixe. Imediatamente comecei a recolher a linha, sentindo o peso da truta. O peixe deu um enorme salto para fora d’água, parecia que estava saltando em câmara lenta de tanto tempo que ele ficou no ar. Era mesmo uma truta, eu lembrei das fotos que tinha visto. Era linda e logicamente enorme, a maior do rio com certeza. Ela não gostou de eu a estar puxando corrente acima e puxou com força no sentido contrário, ganhando linha de volta.

Era guerra, eu regulei a carretilha para dificultar o trabalho da truta e de repente ela parou de puxar. Era minha vez, eu recolhia a linha como um louco, e a distância entre nós ia diminuindo aos poucos. A truta é um peixe famoso por ser combativo mas eu estava ganhando terreno apesar de ela conseguir recuperar linha de vez em quando.

Foi então que eu comecei a pensar em como tirar o peixe da água. Eu estava sobre a ponte a uns dois metros acima do nível da água. Era muita altura para levantar um peixe, eu teria que descer até a margem, mas era impossível pois havia uma árvore aonde a linha iria enroscar se eu tentasse descer. A única possibilidade seria saltar da ponte para a margem, mas lá estava a maldita árvore. A solução então seria saltar dentro da água, na beira do rio, mas era perigoso quebrar um pé nas pedras do fundo. Eu pensava tudo isto enquanto enrolava a carretilha como um louco, e o peixe estava se aproximando. A culpa era daquele pescador que eu estava imitando. Onde já se viu pescar em cima de uma ponte de onde não se pode descer!

Bom, o peixe estava agora embaixo de mim, e nadava quase calmamente, deixando a nadadeira dorsal aparecer fora da água às vezes. Dei uma outra olhada para as pedras sob a água onde teria que saltar mas não tive coragem, e me preparei para puxar o peixe.

Foi ridículo, o peixe nem saiu da água. A linha arrebentou com ele ainda dentro da água, e ele provavelmente iria morrer à toa com uma isca pendurada na boca. Eu estava possesso, queria gritar de raiva, queria pular de cabeça atrás da filha da truta, quebrar a vara, jogá-la no rio, mas me contive e voltei para a minha barraca.

Acendi a fogueira, mas ficar olhando para o fogo não me acalmou. Fui para a cama ouvindo uma música bem calma no walkman, e acabei pegando no sono pois estava super cansado. Aquele havia sido o dia mais longo até então, 5 horas de pedal para cobrir 50km.