segunda-feira, 15 de outubro de 2007

9 - El Calafate e Perito Moreno



El Calafate é bem pequena, mas foi interessante estar de novo em uma cidade, e ver tantos carros, casas e pessoas juntas. Segui diretamente até o “Hotel Los Dos Pinos”, ou “Os Dois Pinheiros”. Eu já havia ligado para eles quando ainda estava no Chile para pedir para usar o endereço deles para receber uma encomenda do Brasil, era o meu tripé para a máquina fotográfica.

Chegando lá descobri que o tripé não havia chegado ainda, estava retido em Buenos Aires e eu teria que pagar 50 dólares de imposto de importação para poder recebê-lo. Fiquei revoltado por ter que pagar para receber uma coisa que era minha, e que depois voltaria de novo ao Brasil. Além de tudo o tripé valia menos que 50 dólares. Resolvi pagar mesmo assim pois estava deixando de bater muitas fotos por não ter um tripé.

Nada podia estragar a minha alegria por estar de volta à civilização e aos chuveiros com água quente. Fiquei embaixo do chuveiro até estar com os dedos enrugados como ameixas, e aí fui até o meu quarto, que até então só tinha eu como ocupante.

Esvaziei todas as mochilas, jogando tudo desordenadamente por todas as camas. Era bom poder ser desorganizado para variar um pouco, pois quando estava “no mato”, tinha que ser bem organizado para não ter que perder tempo procurando coisas ou pensando em como empacotá-las. Quase todas as coisas tinham o seu lugar certo nas mochilas e os penosos processos de empacotar e desempacotar aconteciam quase que automaticamente.

O quarto não ficou vazio por muito tempo, logo chegaram dois argentinos, e depois mais três, que estavam viajando de carona. Viajar “a dedo” é muito popular entre os argentinos, era impressionante o número de mochileiros que eu via pelas estradas ou caminhando pelas cidades, parecia até que estávamos de volta aos anos sessenta.

Logo apareceram mais três pessoas no nosso quarto. Um brasileiro, Fred, de Campinas, que estava viajando de carro e que estava dando carona para duas garotas argentinas.

Foi uma noite divertida e longa, todos estavam com vontade de conversar. O vinho rolou solto a noite inteira animando ainda mais a festa. No fim da noite ainda fizemos uma super macarronada aonde entraram todos os ingredientes que encontramos. Fizemos até umas pizzas com fatias de pão, queijo e orégano.

Após o jantar fomos todos dormir. Na manhã seguinte todos iriam embora, exceto eu, que ainda ia ficar mais um dia na cidade.

Foi gostoso passar um dia como turista, sem pedalar, caminhando à toa pela cidade, comendo biscoitos de chocolate, alfajores, e vendo as lojas de artesanato.

No dia seguinte deixei a bike no hotel, e com a mochila nas costas me uni a dois mochileiros argentinos e fomos até a saída da cidade, tentar uma carona até o Parque Nacional Los Glaciares. Depois de meia hora parou uma caminhonete de um pessoal que estava viajando e pescando trutas pelos rios e lagos da região.

Estava viajando motorizado de novo, e cobrimos os 80km até o parque num piscar de olhos. A entrada no parque foi grátis, pois “mochileiros” não precisam pagar.

O Parque Nacional Los Glaciares tem aproximadamente 200km de extensão de norte a sul e tem como limite a oeste o Campo de Gelo Sul, e a leste as planícies da Patagônia e seus lagos enormes. Durante os 80km de estrada de Calafate até o parque a estrada seguiu praticamente o tempo todo pelas margens do Lago Argentino. A atração principal na parte sul do parque é o Glaciar Perito Moreno, exatamente para onde estávamos nos dirigindo.

Chegando ao parque dei de cara com o Cris e a Jeanine! Para variar nos reencontrávamos de novo, parecia que era impossível nos separarmos. Tomamos uma cerveja enquanto colocávamos as fofocas em dia. Eles estavam hospedados em uma estância na saída do Parque, aonde morava Lautaro, um fazendeiro que já havia acolhido ao irmão de Cris quando ele esteve viajando pela Patagônia. Eles haviam avisado a Lautaro que eu provavelmente apareceria também , de forma que eu poderia ter mais uma amostra de genuína hospitalidade gaúcha.

Nos separamos de novo pois os suíços haviam passado a manhã toda explorando os arredores do Glaciar e iam pegar uma carona para voltar a estância. Fui sozinho observar o Glaciar.

O Glaciar Perito Moreno, provavelmente o glaciar mais famoso do mundo, é realmente uma visão extraordinária. Uma quantidade imensa de gelo descendo do Campo de Gelo Sul até as margens do Lago Argentino. O próprio lago, enorme, tem a maior parte da sua água proveniente do derretimento do gelo do Glaciar Moreno e de outros três glaciares que também desembocam nele. Um paredão de gelo gigante, de quatro quilômetros de largura, e com até 80 metros de altura, avança sobre a superfície da água, quase que dividindo o lago em dois. Essa divisão costumava realmente acontecer, até alguns anos atrás. O lago tinha uma área enorme separada da parte principal. O gelo literalmente isolava as duas partes do lago, e a parte menor tinha o seu nível de água aumentado em até 15 metros de altura! Uma vez a cada quatro anos aproximadamente, a pressão se tornava demasiada, e o gelo acabava se rompendo, permitindo que o excesso de água escorresse de uma parte do lago para a outra num espetáculo de incrível força e beleza.

Infelizmente, já fazem muitos anos que não ocorre mais essa divisão do lago . Uns dizem que o Glaciar está retrocedendo naturalmente, outros dizem que o Glaciar está diminuindo devido ao aquecimento global. O fato é que o lago não se divide mais.

Mesmo assim, ainda pode se observar outros tipos de espetáculos naturais igualmente surpreendentes. Pedaços do glaciar constantemente se rompem, com um barulho ensurdecedor. Os enormes blocos de gelo despencam, desaparecendo momentaneamente na água, para depois ressurgir, como que querendo saltar de volta ao seu lugar original. Esse balanço do gelo levanta uma enorme onda que se espalha em todas as direções podendo facilmente virar uma embarcação que esteja próxima demais.

Fiquei no miradouro, a uma distância de apenas duzentos metros do Glaciar por algumas horas, e pude ver o gelo despencando várias vezes.

No fim da tarde fui até o estacionamento pegar uma carona para encontrar os meus amigos. Existe um movimento muito grande de carros entre o parque e El Calafate e não foi difícil arrumar um que me levasse até a saída do parque.

Localizei a estância facilmente e logo estava com os suíços e Lautaro, que era realmente muito simpático. Ficamos conversando e tomando chimarrão. A erva usada para chimarrão no Chile e Argentina não é tão amarga como a usada no Brasil, aonde eu nunca gostei da bebida. Na Patagônia estava quase me transformando em um fã do “mate”. Se ficasse por lá muito tempo iria acabar como os suíços, carregando a minha própria cuia e erva.

Mais tarde vim a saber que o mate é uma bebida extremamente saudável, com um monte de vitaminas, e que serviria perfeitamente como complemento vitamínico na dieta de um ciclista ou de qualquer pessoa em qualquer lugar. A maioria dos gaúchos não come nada pela manhã antes de sair cavalgando, eles apenas tomam várias cuias de mate, e não apresentam nenhum sinal de debilidade física, muito pelo contrário.

Depois de colocar a prosa em dia começamos a nos preparar para o jantar. O primeiro passo foi picar lenha para podermos cozinhar. Nada de fogões à gaz nas fazendas da Patagônia. A lenha é abundante, e não é necessário derrubar nenhuma árvore para obtê-la, o próprio vento se encarrega disto. Além do mais, ter um fogão à lenha aquece muito a casa, o que torna a lenha a opção mais viável e inteligente para combustível.

Depois disto, Lautaro selecionou a carne que iríamos comer. Ele não tinha geladeira, e mantinha a carne ao ar livre numa espécie de gaiola, só que com paredes de tela bem fina, para que mosquitos não pudessem entrar. O infalível vento se encarregava de manter a carne resfriada. Fiquei feliz em saber que o vento também tinha outras utilidades por ali além da de atrapalhar os ciclistas.

O jantar ficou uma delícia, um guisado de carne de carneiro, com batatas e molho de tomates, acompanhado de muito vinho. Comemos como verdadeiros ciclistas esfomeados recuperando os quilos perdidos.

Após o jantar ficamos um bom tempo ouvindo as histórias de Lautaro, que já havia inclusive participado de caminhadas através do Campo de Gelo Sul.

Ele também costumava trabalhar guiando turistas em cavalgadas de vários dias levando cavalos extras carregados com os equipamentos de camping e mantimentos. Me senti um inútil lembrando a minha incompetência como cavaleiro. Realmente o cavalo era o meio de transporte ideal na Patagônia. Com ele é possível andar em praticamente qualquer lugar, passando por áreas literalmente intocados pela mão do homem , usufruindo de uma liberdade enorme. Além disto, viajando desta forma a pessoa fatalmente desenvolve uma relação íntima com a cultura gaúcha, penetrando em um universo exótico, aonde há muito para se aprender em relação à convívio com a natureza .

Lautaro me falou que raramente cavalgava por estradas, os caminhos eram todos através do campo ou florestas de Lenga. É necessário se informar com os fazendeiros para saber sobre os melhores caminhos e os lugares certos para atravessar rios e outros obstáculos. Ele me disse também que alguns viajantes compram cavalos para realizar viagens longas, e ao final da viagem os vendem de novo.

Eu estava impressionado, não imaginava que ainda fosse possível viajar assim, sem estradas e cavalgando livremente por terras de outras pessoas. Deveria ser uma experiência incrível, talvez ainda volte a procurar Lautaro, caso algum dia consiga aprender a andar à cavalo.

No dia seguinte nos despedimos de Lautaro, os suíços voltaram para Calafate pedalando e eu peguei mais uma carona, estava curtindo dar um descanso para as pernas, e pegar carona é sempre uma experiência interessante, aonde tudo pode acontecer. Eu mal cheguei na estrada e apareceu um carro que parou. Eram turistas australianos, muito simpáticos, que ficaram preocupados ao me ver tentar pegar carona naquele “fim de mundo”.

Engraçado como as coisas podem ser tão relativas e as aparências podem enganar tanto. Eu não estava sofrendo nenhum pouco, as coisas estavam acontecendo com grande facilidade e naturalidade, era muito fácil pegar carona, e estava perfeitamente habituado a pedalar e carregar tudo que eu necessitava na bike ou na mochila. Comia também muito bem e afinal de contas não ventava tanto assim na Patagônia. O vento estava sempre ali, mas raramente me atrapalhava seriamente. A chuva também , até então não tinha visto nenhuma chuva de verdade, iguais as que temos no Brasil. A chuva era mais garoa do que chuva, e não ocorria com tanta frequência como as pessoas e os livros diziam.

Isso confirmava a hipótese que eu tinha levantado quando ainda estava planejando a viagem. As pessoas enxergam problemas demais quando consideram a hipótese de manter um contato mais estreito com a natureza . Com um certo preparo, equipamento e paciência, é possível superar os problemas que surgem pelo caminho.

Tudo é uma questão de hábito. Eu já estava habituado a viver daquela maneira, e não achava desconfortável. Quando chovia ou ventava mais forte eu reclamava para mim mesmo, mas era natural, havia um preço a pagar por aquela liberdade, e de vez em quando eu pagava umas “prestações” de desconforto, às vezes eu pagava outras de solidão. Mas eu estava totalmente feliz, fazendo a coisa certa para mim, saboreando várias vezes ao dia aquele gostinho de realização pessoal. O legal é que todos os dias acontecia algo diferente, e os lugares por onde passava pareciam ser sempre mais bonitos que os anteriores.

Bom, de volta a Calafate tomei outro banho delicioso e aproveitei para lavar roupas pois na manhã seguinte iria partir de novo com a bike.

Havia combinado de me encontrar com os suíços às dez da manhã do dia seguinte para partirmos juntos mas eu não consegui fazer todas as compras a tempo e eles acabaram indo sem mim. Acabei saindo às 11:30. Estava com a bike carregada ao máximo pois estávamos indo para Chalten, que é uma cidade bem pequena e tinha fama de ser super cara por ser muito turística. Na verdade Calafate também é bem cara e os preços acabaram sendo praticamente os mesmos.

O vento estava a meu favor e fiz uma media de 25 km/hora por 30 km. Depois o asfalto acabou e eu entrei na famosa “Ruta 40”. A Ruta 40 atravessa toda a Patagônia Argentina de norte a sul e entre os ciclistas é famosa por causa dos terríveis ventos, a falta de água e também falta de locais protegidos para acampar.

O vento estava forte, agora soprando de lado e me atrapalhando um pouco. Mas depois de mais 50 km cheguei a uma espécie de posto rodoviário aonde reencontrei o Cris e a Jeanine. Era um lugar bem estranho, havia uma casa enorme que era ocupada por apenas uma pessoa, que passava o dia todo sentado junto ao fogão, ouvindo rádio, olhando pela janela, e contando os raros carros que passavam. Tomamos um pouco de mate com ele e fomos dormir no galpão aonde havíamos guardado as bikes.

Na manhã seguinte estava bem frio, a Patagônia Argentina é bem mais seca que a Chilena e acho que isso contribui para aumentar a sensação de frio. Saímos cedo para os meus padrões, às 9:30 da manhã, e depois de duas horas paramos no Hotel La Leona para descansar, comer um pedaço de torta e tomar um chocolate quente. Acabamos comendo vários pedaços de torta, que era realmente deliciosa.

O Hotel La Leona é realmente um lugar estranho. Um Hotel na beira da Ruta 40, aonde passam pouquíssimos carros. Quase ninguém se hospeda lá, e o negócio vive de vender tortas, sanduíches e etc. aos turistas que passam por ali. O lugar é administrado por uma senhora e suas duas filhas, o que torna o lugar mais original ainda. A paisagem é bem desértica e venta muito.

Resolvemos passar o resto do dia por lá mesmo. O Cris aproveitou para fazer pão, Jeanine ficou escrevendo e eu fiquei ajudando uma das garotas a plantar umas árvores que formariam uma barreira para o vento quando crescessem. Para mim foi muito legal fazer algo diferente da nossa rotina de viajante, algo importante e concreto, como plantar aquelas árvores. Fico curioso em saber se elas realmente sobreviveram à falta de água e ao vento.

No fim da tarde fui até o rio que passava perto da fazenda, que era tido como bom para pescar, e resolvi tentar a sorte na pescaria junto com o Cris. Depois de experimentar em diferentes lugares acabei fisgando uma truta. Para minha surpresa a truta não lutou ao ser arrastada para fora, parecia até que ela queria ser pescada. Finalmente tinha valido a pena trazer o equipamento de pesca.

A truta era de tamanho médio, com um quilo e meio, e junto com outras duas que o pessoal do hotel tinha, fizemos um belo jantar para todos.

No dia seguinte o nosso objetivo era chegar a Chalten, uma pequena vila dentro da parte norte do Parque Nacional Los Glaciares. A distância até lá era de aproximadamente 90 quilômetros na direção oeste, exatamente a direção da qual vinham os ventos.

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