segunda-feira, 15 de outubro de 2007

8 - De Torres del Paine a El Calafate



Levantei às três da madrugada e às cinco estava saindo, depois de me despedir dos meus amigos. Logo saí do parque, atravessando um portão que dava acesso à uma fazenda, pela qual a estrada continuava. Fazia muito frio pois ainda estava escuro, e não havia ninguém à vista na saída do parque ou na fazenda.

A estrada logo virou na direção oeste, a direção da Argentina, e começou a subir ligeiramente. Era natural ter subida pois afinal de contas a fronteira entre o Chile e a Argentina é formada pelos Andes, e eu ia ter que atravessá-los. Entretanto sabia através do meu mapa que eu não atingiria uma altitude superior a 800 metros. Apesar disto a pedalada foi bastante cansativa pois havia muitas subidas e descidas íngremes.

Depois de duas horas e meia cheguei a Estância la Porfiada, que quer dizer “A Teimosa”. Havia feito 21 quilômetros de estrada de terra boa da Laguna Azul até ali. Havia vários cachorros e eles latiam desesperados anunciando a minha chegada. Felizmente estavam amarrados.

Resolvi esperar até que alguém aparecesse para me mostrar o caminho a partir dali. Eu podia ver uma trilha que continuava em frente, mas não tinha certeza que aquele era o caminho a seguir. Fiz um lanchinho e deitei na grama, estava um dia lindo e caí num sono gostoso aquecido pelo Sol.

Igor chegou logo depois que eu acordei, e me convidou para entrar e tomar um café.

A casa era bastante simples, de madeira, e ele morava ali sozinho. Seu trabalho era andar a cavalo todas as manhãs para se assegurar que as vacas estivessem bem . A estância era enorme e havia muitas vacas. Apesar disto ele tinha muito tempo livre para fazer o que quisesse, e apenas os cachorros , cavalos, vacas e o rádio para lhe fazer companhia.

O rádio era o elemento mais importante para aliviar a solidão e ficava ligado o tempo todo .Havia um programa especialmente feito para as estâncias, aonde se transmitiam mensagens de amigos, familiares, etc.

Igor me convidou para almoçar, e enquanto esquentava a comida me contou que muitos ciclistas passavam por ali. Ele já havia recebido inclusive pessoas que estavam viajando a pé.

Nunca vou esquecer este almoço, carne de carneiro e batatas assadas no forno. A minha primeira refeição de verdade e com gosto de comida caseira que comi em quase um mês de viagem. Comi muito bem, Igor não parava de me dar mais comida. Com certeza havia aprendido que o ciclista é um tipo com grande apetite.

Para ajudar a fazer a digestão, me ofereceu um chá com pisco, que desceu muito bem,

Retomei a viagem logo em seguida, através de um “sendero”, ou trilha, que Igor me indicou. O caminho estava em boas condições, se tratava de uma antiga estrada desativada por onde passavam apenas vacas e cavalos, e de vez em quando, bicicletas.

Logo após a casa de Igor encontrei o tal rio que devia atravessar carregando a bike. O nível da água estava baixo e por isso foi fácil atravessá-lo. Nem precisei levantar a bike, simplesmente a empurrei pela água, que mal chegava ao meio da roda.

Depois de mais 23 quilômetros, cheguei a casa de Orlando, que é primo de Igor e toma conta do extremo oeste da estância. Ele também vive sozinho, com oito cachorros, dois cavalos e tem uma rotina bastante semelhante a de Igor, basicamente andar a cavalo cuidando das vacas.

A casa dele tinha as paredes feitas de telhas tipo “Eternit”, como muitas outras casas que eu já havia visto antes na Patagônia. A diferença era que na casa não havia piso, apenas chão de terra. A casa havia acabado de ser construída pelo próprio Orlando, e o chão no interior ainda estava coberto de grama, o que tornava a cabana mais original ainda.

Dentro não havia nenhuma parede dividindo o ambiente. Num canto havia a cama de Orlando, e na frente dela havia um latão de óleo de 80 litros que foi transformado em um fogão a lenha, que também servia como aquecedor e churrasqueira. Em baixo da janela estava a mesa e ao lado dela estavam guardados os equipamentos para andar a cavalo, como selas, cabrestos, freios e etc.

Orlando foi um ótimo anfitrião, eu mal havia chegado e já estávamos comendo um delicioso churrasco à base de costelas assadas em frente ao fogão-aquecedor-churrasqueira. Depois de comer ficamos conversando, cada um contando as suas histórias. Orlando havia tido uma vida interessante, com vários empregos diferentes, e estava ali porque gostava da tranquilidade do campo. Era muito inteligente e com um ótimo senso de humor, o que contrastava com a sua aparência de gaúcho sério.

Coloquei o meu colchão e saco de dormir perto do fogão e adormeci, escutando ao rádio, que também aqui era a única ligação com o mundo “civilizado”.

Orlando tem um pouco mais de trabalho que seu primo pois a estância faz fronteira com a Argentina, e não há cercas que impeçam que as vacas passem ao outro lado. Por isso ele tem que acompanhar as vacas mais de perto. Apesar de estar “sozinho”, Orlando contava com a ajuda de seus oito cachorros quando tinha que tocar o gado, e eles eram extremamente eficientes.

A fronteira Argentina estava a apenas um quilômetro de distância, e podíamos ver o marco fronteiriço da porta da cabana. Fomos a pé até o outro lado da fronteira, aonde mora um outro gaúcho que cuida da estância que existe do lado argentino.

O “viejo Pineda” tem 84 anos e leva uma rotina dura como todos os gaúchos, praticamente todos os dias monta em seu cavalo e percorre os campos controlando as vacas. Era inacreditável que ele conseguisse fazer isso realmente pois ele nem conseguia ficar em pé direito e também andava com bastante dificuldade. Mas Pineda era uma espécie de figura lendária por aqueles lados, havia praticamente nascido em cima de um cavalo e iria cavalgar até que realmente não pudesse mais. Ficamos tomando mate, enquanto ouvíamos as intermináveis histórias de Pineda.

Nas histórias sempre havia o mesmo vilão, “El Leon”, ou o puma, que era o inimigo preferido de Pineda. Depois vim a saber que “el viejo Pineda” era famoso como o maior matador de pumas da área e como grande mentiroso também .

Apesar das eventuais mentiras, a essência da história era verdadeira. Gaúchos e pumas nunca se deram bem por aqueles lados, e na maioria das vezes os gaúchos matam os pumas se existe uma oportunidade, pois segundo eles, os pumas matam muitos bezerros e ovelhas, causando grandes prejuízos. Isso abalou bastante a imagem que eu fazia dos gaúchos como um povo que vive em meio à natureza harmoniosamente.

À tarde voltamos a cabana de Orlando que havia insistido para que eu experimentasse dar uma volta à cavalo. Foi um fracasso, eu nunca havia conseguido cavalgar sem problemas antes e essa vez não foi exceção. No início tudo correu bem e eu conseguia controlar o animal, mas o cavalo é um ser muito esperto e percebe quando o cavaleiro não esta à vontade ou está com medo. Assim que ele percebeu que eu não era exatamente um cavaleiro experiente, começou a bufar e sacudir a cabeça, o que me deixou ainda mais nervoso. Em seguida ele começou a aumentar o passo e a galopar, cada vez mais rápido. Eu tentava acalmá-lo e fazê-lo parar, mas a única coisa que consegui era fazê-lo cavalgar em círculos, o que pelo menos servia para abaixar a velocidade.

Acabei conseguindo parar o cavalo e imediatamente o devolvi a Orlando. Estava um pouco desapontado com a minha incompetência como cavaleiro mas não me preocupei muito pois não tinha muitas ilusões em relação a me tornar um.

No dia seguinte Orlando saiu cedo com o cavalo e me deixou sozinho em sua casa enquanto eu me preparava para partir.

Teria que percorrer algo como 20 quilômetros até encontrar a estrada normal no lado argentino. A trilha seria bastante estreita e acidentada e por isso eu coloquei as coisas mais pesadas na mochila, que eu levaria nas costas, e deixei a bike o mais leve possível para poder empurrá-la, atravessar rios, carregá-la, etc.

Por sorte eu teria praticamente apenas descida pela frente, o que facilitava bastante as coisas. A trilha percorria uma área de campo aberto e a orientação era bastante simples, caso eu perdesse a trilha, bastava seguir o curso de um riachinho que me levaria até a estrada.

Apesar de a trilha ser fácil de seguir, não podia pedalar o tempo todo pois o terreno era muito esburacado devido às pegadas feitas pelas vacas que costumavam passear por ali. O dia estava muito bonito, e eu me sentia muito bem. A sensação de estar sozinho trilhando um caminho não convencional aumentava a emoção de tudo.

Depois de um certo tempo, a trilha entrava em uma floresta e eu passei a viajar ainda mais devagar pois tinha que desmontar da bike o tempo todo para passar sobre troncos de árvores caídas.

A floresta não me causou problemas. Quando voltei a entrar em campo aberto, a trilha se tornou mais estreita ainda e bem indefinida, desaparecendo por completo às vezes. Isso não causava problemas de orientação pois àquela altura eu já podia ver a estrada na planície lá embaixo, a mais ou menos 5 quilômetros de distância.

Era impraticável pedalar por causa do terreno acidentado e largura da trilha. Eu tinha que empurrar praticamente o tempo todo, escolhendo se era eu ou a bike a ficar fora da trilha, passando Pelo capim. Quando era eu a caminhar fora da trilha, sofria com as pernas sendo arranhadas, e quando colocava a bike no capim tinha que fazer muita força para empurrá-la.

Ainda bem que era descida, se estivesse tentando atravessar da Argentina para o Chile teria problemas bem maiores. Depois de um certo tempo consegui ver uma estradinha à minha direita que levava diretamente à estrada principal. Ela estava um pouco longe da trilha, mas a descida até ela era forte e por isso optei em tomar um atalho radical pelo capim para ganhar tempo.

Foi fácil pois na descida todo santo ajuda, mas quando fui voltar a pedalar, percebi que o pneu dianteiro havia esvaziado um pouco. Eu não queria parar para trocá-lo pois queria chegar logo à estrada principal, aonde havia uma fazenda, para só ali descansar. Depois de encher o pneu montei na bike e continuei a pedalar. A descida era forte e logo cobri os poucos quilômetros até a estrada.

A Estância Lago Roca tinha um enorme portão, com uma roda de carroça em cada lado. Havia uma placa com o nome da estância pendurada, balançando com o vento. A vegetação era meio desértica, apenas com arbustos rasteiros. A estância parecia abandonada, protegida do vento atrás de uns ciprestes enormes. Para completar o clima de velho oeste só faltava passar uns arbustos ressecados rolando à minha frente.

Atravessei o portão empurrando a bike pois o pneu já estava murcho de novo, e me dirigi à entrada da casa. Não havia ninguém à vista, e fui bater na janela, já que não havia campainha.

Depois de esperar um tempo aparentemente interminável, apareceu um senhor idoso, com cara de personagem de um filme de suspense, destes em que a família toda foi assassinada e enterrada no jardim.

Contei para ele a minha história, apontando para a bicicleta que estava encostada na cerca, para torná-la mais plausível. Ele demorou um pouco para entender que eu estava realmente fazendo aquilo que estava dizendo. Ele me convidou para entrar e tomamos um delicioso chá enquanto conversávamos. Meu anfitrião deu risada ao saber que eu estivera com o “viejo Pineda”, e me disse para dar um bom desconto nas histórias que seguramente o velho havia me contado.

Depois do chá fui remendar o pneu furado. Tive problemas para encontrar os furos pois eles haviam sido provocados por espinhos bem pequenos e eram difíceis de encontrar. Ao todo encontrei quatro furos no pneu da frente, e por isso resolvi deixar para consertar depois, substituindo a câmara furada por uma de reserva que levava comigo. Fiquei surpreso em como o pneu havia demorado para esvaziar mesmo com quatro furos. Os furos eram realmente muito pequenos.

Me despedi do fazendeiro e caí na estrada de novo, faltavam apenas 40 quilômetros de estrada plana para eu chegar em El Calafate, a minha primeira cidade na Argentina. Finalmente estava chegando em uma cidade, depois de 17 dias desde que saíra de Puerto Natales. El Calafate é uma pequena cidade nas margens do Lago Argentino, e sua economia está praticamente toda relacionada com o movimento de turistas que visita o Parque Nacional Los Glaciares, ao norte da cidade.

Logo que saí da Estância Lago Roca, percebi que o meu pneu traseiro estava um pouco vazio, e parei para enchê-lo. Com certeza ele devia ter algum “mini furo” também e talvez fosse possível pedalar até a cidade sem precisar trocar a câmara. Estava enganado, pude pedalar uns 15 minutos e o pneu já estava murcho de novo. Que situação ridícula, eu já não tinha uma câmara de reserva sem furos e teria que remendar pelo menos quatro furos, aliás mini furos, que são difíceis de encontrar. Para aumentar a minha felicidade estava começando a chover, e não havia nenhum lugar protegido da chuva aonde eu pudesse remendar a câmara.

Na verdade eu não estava com a mínima vontade de consertar nada. Eu estava molhado, cansado, com fome, e a apenas trinta quilômetros da cidade, aonde poderia tomar um delicioso banho quente.

A solução óbvia para o problema era pegar uma carona, e logo apareceu o primeiro carro, que foi inútil para mim pois não tinha espaço para a bike. O segundo carro era um caminhão, que parou, mas também não tinha espaço pois estava super carregado com vacas. Que saco, a chuva continuava a cair e eu já estava completamente ensopado. Finalmente o terceiro carro apareceu, uma linda caminhonete ano setenta e pouco, cheia de espaço na caçamba e com um motorista legal que parou ao ver me fazendo gestos alucinados na beira da estrada.

Coloquei a bike na caçamba e entrei na cabine, que estava deliciosamente seca e quentinha. O motorista e seus amigos estavam trabalhando na restauração de um barco que levava turistas para passear no Lago Argentino, e faziam aquele trajeto todos os dias. Era engraçado andar de carro de novo, as subidas e descidas passavam por nós como se nada estivesse acontecendo, nem mesmo barulho de vento havia.

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