segunda-feira, 15 de outubro de 2007

2 - Santiago

Finalmente chegou o grande dia, e eu nem estava ansioso. Estava me sentindo distante, quase que anestesiado. Não pensava em quase nada e parecia que esse negócio de viagem à Patagônia nem era comigo. As malas estavam feitas. Coloquei tudo na mochila para caminhada, exceto pelos itens mais valiosos do equipamento que coloquei dentro de um dos alforjes da bike e levei como bagagem de mão.

Meu amigo João Paulo me levou ao aeroporto, aonde nos despedimos rapidamente e fui fazer o check-in. Despachei a bike sem problemas, não cheguei nem a colocá-la em uma caixa, apenas dobrei o guidom e tirei o ar dos pneus, para o caso de uma despressurização no compartimento de bagagem. A bike pesou 13kg, a mochila outros 13kg, e o alforje (que levei como bagagem de mão) mais 10kg. Era permitido despachar 20kg de bagagem mas não tive que pagar nada pelos 6 kg de excesso.

Dei as minhas últimas voltas pelo aeroporto. Engraçado, para mim quando estou em aeroportos sempre parece que já cheguei ao meu destino. Bom, eu já estava sozinho, ainda no aeroporto de São Paulo, mas em poucos momentos ia estar no aeroporto de Santiago, que ia ser igual a qualquer outro, chão de mármore e janelonas de vidro. É isso mesmo, já podia considerar que a viagem começara. Na realidade a viagem já havia começado muito antes, com as primeiras viajadas mentais.

O vôo foi normal, nada de excepcional, nem me lembro qual foi a comida. Cheguei no fim da tarde em Santiago. Foi com grande alívio que eu recebi a minha bike e mochila intactos. Fui direto pegar dinheiro com o cartão de crédito e em seguida telefonar. Tinha o telefone de três anfitriões potenciais para a minha primeira noite no Chile. Não conhecia nenhum deles mas eles sabiam de minha chegada. O único detalhe é que eu estava uma semana atrasado. Conclusão, não encontrei nenhum deles em casa.

Eu não tinha nenhuma informação sobre Santiago, tinha somente o livro que falava sobre as caminhadas na Patagônia, 3000km mais ao sul. Estava na hora de começar a “hablar Espanhol”. Comprei uma passagem de ônibus até o centro e enquanto esperava por ele, me informei sobre algum lugar para ficar. Eu perguntava aonde era o “albergue de la juventud”, mas o cara para quem eu perguntava não me entendia, o que me fez pensar que “albergue da juventude” não é “albergue de la juventud” em Espanhol.

Ele me recomendava ir para uma “hospedaje”, mas “hospedaje” soava caro demais para mim. Eu queria ir aonde o pessoal de mochila se hospedava, e insistia em “albergue, donde van los mochileros, me entiende?”. Finalmente, ele entendeu “mochilero”, e me falou para ir até o “Refúgio de Padre Hurtado”. Eu não sabia se ele estava me entendendo ou não, que história era aquela de refúgio, padre. Ele me garantiu que no refúgio havia outros viajantes de mochila, e que eu não ia ser obrigado a entrar para nenhuma seita.

Bom, peguei o ônibus, segui a indicação e fui até o refúgio. Nesta altura dos acontecimentos já havia anoitecido, e eu pessoalmente não gosto de perambular à noite por uma cidade grande desconhecida, com uma bike e mochila chamando a atenção. De qualquer forma cheguei fácil até o refúgio, todos a quem perguntava sabiam o caminho. Só faltava aquilo, o “Refúgio de Padre Hurtado” era um abrigo para indigentes idosos. O rapaz que estava na recepção quase caiu para trás quando eu perguntei se podia dormir lá.

Ainda tentamos mais uma vez os meus números de telefone, mas não adiantou. O jeito foi dormir lá mesmo. Foi um choque. Sair de casa e cair naquele lugar. Agora sim, com certeza estava viajando, estava acontecendo algo totalmente diferente do que eu imaginara. Havia pelo menos vinte pessoas em cada dormitório, mas ainda havia camas sobrando. O zelador me indicou uma delas.

Havia muitos barulhos, uns tossiam, outros se mexiam nas camas, que rangiam, outros gemiam. No corredor havia mais barulho ainda, gente andando arrastando os pés, gente falando sozinha, e até um gritando, e ficou gritando palavrões boa parte da noite. Ninguém parecia se incomodar com nada. De vez em quando o zelador trazia mais alguém até alguma cama e o ajudava a se deitar.

Demorei a cair no sono apesar de estar super cansado. Havia sido um dia longo, com um final mais longo ainda, e eu tentava digerir tudo isso e entrar em sintonia com um novo ritmo de vida, imprevisível e diferente, todos os dias dali para a frente.

No dia seguinte saí cedo a procura de um lugar razoável para dormir e aprendi que “hospedaje” não era tão caro assim, e encontrei uma por 10 dólares. Tinha um quarto só para mim, até que não estava mal. Dormi a manhã toda e à tarde saí para comprar as últimas coisas de que necessitava.

Santiago é uma cidade agradável, e foi fácil encontrar as lojas que procurava, estavam inclusive na mesma rua, Calle 18. Precisava de uma ferramenta para desmontar o pinhão (catracas) da roda traseira. Não tinha encontrado a ferramenta ideal em São Paulo, que em inglês se chama “Hyper Cracker”. Em português ela nem tem um nome específico. O pinhão necessita de várias ferramentas combinadas para desmontá-lo, a menos que você tenha esse “Hyper Cracker”. Eu queria encontrar a tal ferramenta pois queria evitar carregar coisas em excesso. Mas não adiantou, o pessoal nem conhecia o tal do “Hyper Cracker”. Em relação a equipamentos mais normais, havia uma grande variedade de acessórios e peças. Resolvi esquecer o maldito “Hyper Cracker”, afinal eu só iria precisar dele no caso de algum raio traseiro do lado direito (o lado das engrenagens) quebrar. Se isso acontecesse eu iria precisar pegar uma carona até a oficina mais próxima e improvisar algo.

Eu também precisava de um adaptador de entrada para fone de ouvido, que convertesse sinais mono para sinais estéreo. Esse adaptador é do tamanho de uma tampa de caneta Bic e era de vital importância. Eu tinha pego junto a Rádio Eldorado de São Paulo um gravador com o qual pretendia gravar uns boletins que viriam ao ar no programa “Esporte-Aventura”. Esse gravador também serviria de walkman, e por isso precisava do adaptador, para poder ouvir música em ambos os ouvidos.

Eu estava mesmo com sorte, havia um monte de lojas de equipamentos eletrônicos ao lado das lojas de bike, e não foi difícil encontrar o adaptador.

Faltava-me agora comprar mapas dos parques nacionais que iria visitar, e fui até o I.G.M. (Instituto Geográfico Militar) procurá-los. Os mapas do I.G.M. são muito bons, e tem informações bem precisas sobre o relevo dos parques. Apesar disto, não indicam as trilhas existentes e é necessário colocá-las no mapa à mão para facilitar a orientação (pode-se fazer isso baseando-se em outro mapa que contenha as trilhas).

Dei azar, era sábado e o escritório estava fechado. Desisti também dos mapas pois no meu livro já havia uns mapas básicos dos parques. Se achasse necessário iria procurar outros melhores depois.

Passei o resto da tarde explorando a cidade. Essa é outra vantagem de se viajar de bike, tinha chegado à noite anterior trazendo meu próprio veículo, e podia me locomover livremente com uma facilidade incrível.

Mas o meu destino era a Patagônia e por isso na manhã seguinte já tinha colocado a minha bike no bagageiro de um ônibus e estava a caminho de Puerto Montt, no extremo norte da Patagônia.

Durante a viagem no Chile iria pegar vários ônibus para cobrir distâncias grandes através de áreas que não me interessavam. Colocava a bike em pé dentro do bagageiro do ônibus (basta retirar a roda traseira) e a amarrava com uma cordinha. Normalmente tinha que pagar aproximadamente 5 dólares pelo transporte da bike mas às vezes o motorista nem se preocupava com isso e a bike viajava de graça.

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