segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Introdução

Viajar é preciso, e para mim sempre foi o motivo e objetivo de quase tudo o que faço.

Mesmo assim, sempre passo por um dilema toda vez que estou para partir. É a relutância em partir sozinho. É um dilema insolúvel pois sempre chego a mesma conclusão, é melhor partir sozinho e ser livre para tomar qualquer rumo ou direção. Mas essa vontade de estar com alguém sempre volta, é o conforto e a segurança de ter alguém com quem dividir os problemas, as alegrias e descobertas do caminho.

A idéia é tentadora, mas onde encontrar a pessoa certa, ou mesmo alguém disposto a partir? É difícil. Infelizmente, hoje em dia a maioria das pessoas está mergulhada em uma luta contra o tempo. Todos estão trabalhando ou se preparando para assumir alguma função nessa máquina de produzir e consumir dinheiro, coisas, e por que não, pessoas.

Sonhar tornou-se difícil, quase que incomum. Sonha-se muito com conforto, carreira e segurança, e pouco com aventura e exploração. Isso nunca me agradou e me incomoda a ironia de o homem ser o único animal capaz de criar, pensar, e chegar a conclusões. E depois deste lindo processo, inventar algo que na maioria das vezes não é realmente necessário, e que acaba por nos aprisionar ainda mais a um mundo artificial e complicado.

Esta é a história de uma viagem, um mergulho em uma outra realidade, muito diferente da realidade urbana, mas muito mais próxima de todos nós do que ela pode aparentar a primeira vista. Espero mostrar com essa história o quão simples pode ser organizar e realizar uma viagem como essa, e incentivar as pessoas que sonham com algo semelhante a partir.

Partir é sempre o mais difícil. Uma vez na estrada, as coisas sempre acontecem, e por mais que se planeje uma viagem, sempre vai ser necessário improvisar. Não quero dizer que o negócio é sair pelo mundo totalmente sem rumo ou planos, mas deve-se gastar menos tempo, energia e pensamentos com desculpas para não realizar os nossos sonhos. O brasileiro é campeão de improvisação. Todos os dias temos que usar a cabeça criativamente para encontrar uma maneira melhor para fazer as coisas. Desde um caminho alternativo para ir ao trabalho até uma maneira para fugir da violência presente na grande cidade.

Na cidade existem milhões de pessoas e incontáveis variáveis que podem nos atrapalhar. Se conseguimos sobreviver aqui sem grandes acidentes, porque não conseguiríamos sobreviver mais próximos à natureza, que é muito mais gentil e inspiradora? As coisas que podem nos atrapalhar em uma viagem, digamos, mais selvagem, são poucas, e com planejamento e equipamentos adequados pode-se ir muito longe, preparado para os problemas que são sempre os mesmos; Orientação, proteção dos elementos, alimentação e locomoção.

Se você tem o equipamento e conhecimento para solucionar esses problemas, pode fazer as malas (não se esqueça de levar dinheiro) e cair na estrada.

Boa viagem!

1 - Preparativos


Eu acabei partindo sozinho, não encontrei ninguém interessado, disposto ou livre para vir comigo. Além disso, não acredito muito em procurar companheiros de viagem. Acho que o acaso oferece oportunidades melhores. Eu sabia que ia encontrar gente pelo caminho e que poderia me juntar e separar dessas pessoas, conforme fossem acontecendo as coisas.

A viagem seria de bicicleta, para mim não existe outra maneira de viajar que proporcione liberdade e sensações tão grandiosas com um custo tão baixo. Também faria várias caminhadas nos locais por onde passasse.

O local seria a Patagônia, que já tem um nome exótico o suficiente para se tornar um local atrativo, e fora isso oferece paisagens maravilhosas quase intocadas pelo homem .

Existem duas teorias para explicar o nome “Patagônia” . A primeira diz que Fernão Magalhães, navegador português a serviço do rei da Espanha, teve a idéia ao perceber que os índios locais tinham pés enormes, daí o nome Patagônia.

A segunda teoria, mais elaborada mas talvez não mais verdadeira, diz que Magalhães se inspirou no romance renascentista “Primaleão da Grécia”, que falava sobre as terras de “Gran Patagon”.

De qualquer forma o nome não importava muito. As informações que eu tinha prometiam muitas possibilidades de aventura em lugares pouco visitados e um contato bem estreito com a natureza . Tão estreito que o vento e chuva prometiam ser grandes adversários no dia-a-dia. As caminhadas também seriam incríveis, passando por lugares muito diferentes; Montanhas, glaciares, florestas, e lagos de origem glacial.

Levaria comigo todo equipamento para acampar. Poderia carregar na bike comida para 15 dias se fosse necessário. Viajando de bike é possível levar todo o necessário para ter uma autonomia total, a única coisa que precisaria seria água, e isso não é um problema na Patagônia.

Seria perfeito, uma bike com tudo que eu precisava, e uma longa estrada pela frente, me levando a lugares maravilhosos. Muito básico e tentador, sem grandes complicações. Teria que conquistar o meu avanço contra o vento e as subidas, mas “ganharia” as descidas sem esforço algum, e elas seriam acompanhadas de boas doses de adrenalina. Encontraria incríveis visuais, que teriam sua beleza ampliada pelo silêncio e sensação de estar sozinho em um lugar primitivo e isolado.

Mal podia esperar, e hoje de volta a São Paulo, olhando para o computador e escrevendo, mal posso esperar pela hora de partir de novo.

De qualquer maneira, antes de partir ainda teria que passar pelas famosas preparações. Preparar-se bem para uma viagem é fundamental, especialmente em uma viagem aonde se está basicamente sozinho, longe de pessoas, hotéis, restaurantes, etc.

O primeiro passo foi procurar um livro que me desse informações a respeito dos lugares por onde iria passar e um mapa. O livro foi fácil, já estava de olho nele fazia tempo e nem precisei comprá-lo, emprestei de um amigo. O livro foi o “Trekking in The Patagonian Andes”, da editora Lonely Planet. Ele foi ótimo para informações sobre o clima e tem informações detalhadas sobre as caminhadas mais importantes que podem ser feitas na Patagônia. Para encontrar um mapa a coisa foi diferente, pois é muito difícil encontrar algo com uma escala adequada. Encontrei mapas da América do Sul, mas não serviam para muita coisa. Acabei arranjando um mapa de segunda mão que serviu até que eu encontrasse outro razoável, o que só aconteceu no Chile.

Com esse material na mão pude ter uma boa idéia do que iria encontrar pelo caminho. A minha primeira impressão foi um pouco intimidadora, o livro falava de ventos muito fortes que sopram durante o ano inteiro, com mais força ainda no verão. Apesar disto, o verão é a melhor época para ir a Patagônia pois assim evitam-se as fortes chuvas do outono, e o frio e neve do inverno, que tornariam uma viagem de bike muito desconfortável. De qualquer forma segundo o livro pode haver neve até mesmo no verão, e as chuvas estão sempre presentes, junto com o vento que vem do quadrante oeste-sudoeste.

O vento traz umidade do Oceano Pacífico, e essa umidade se precipita ao encontrar os Andes. Conclusão, chove muito na Patagônia Chilena, e muito pouco na Patagônia Argentina. A minha rota se mantinha quase que o tempo todo no Chile, e eu estava começando a ficar preocupado com as condições que iria encontrar pela frente. Quanto mais eu pesquisava, piores as coisas pareciam, e várias pessoas que estiveram por lá me advertiram sobre o vento e chuva.

A minha grande esperança era que as pessoas estivessem exagerando. Eu já havia tido essa experiência antes, estar fazendo algo que outras pessoas diziam ser muito difícil ou “loucura”. Nunca aconteceu nada de mal, pelo contrario, foi fazendo as coisas mais “desaconselháveis” ou “loucas” que mais me diverti e aprendi. Além disto eu sabia que muitas pessoas já haviam viajado de bike pela Patagônia, e portanto era possível fazê-lo.

Não havia nada a fazer, somente depois de iniciar a viagem é que eu ia saber a verdade sobre o clima na Patagônia. A única coisa que eu podia fazer era me preparar para o pior possível. A ansiedade era grande pois tudo poderia correr tranquilamente, mas se o vento fosse tão forte poderia ser um pesadelo.

Em relação à rota a seguir não houve muita dúvida. Eu iria começar em Punta Arenas, no Chile e pedalar em direção ao norte, passando por vários parques nacionais onde iria fazer caminhadas. Optei em iniciar no sul pois assim estaria “subindo” para o norte na medida que o verão acabava. A viagem deveria terminar em Puerto Montt, depois de 2300km pedalados em 40 dias (média de 60km/dia), e depois de aproximadamente 60 dias de caminhadas pelos parques nacionais.

Bom, esse era o plano, restava saber o quanto ele iria ser alterado durante o caminho. Depois de ter o plano e os números de dias, quilômetros, etc. definidos, resolvi colocar tudo organizado e datilografado, em forma de um projeto, o qual batizei de “Projeto Patagônia”.

Com o projeto em mãos comecei a procurar um patrocinador, mas faltava pouco mais de um mês para a minha partida e era muito pouco tempo para organizar algo. Acabei conseguindo o apoio da Anderson Bicicletas, que forneceu todas as peças para a bike. http://www.andersonbicicletas.com.br/

Faltava reunir o equipamento de campismo e o fotográfico. Eu passava o tempo organizando estas coisas e pesquisando. Na última hora resolvi levar também um equipamento para pescar trutas. A Patagônia é famosa internacionalmente como um ótimo local para pesca de truta e salmão. O equipamento era bem pequeno e leve, a vara era telescópica, e quando fechada ocupava muito pouco espaço. Tinha também uma carretilha pequena e vários tipos de isca. Eu nunca havia pescado antes, mas com três meses para viajar e muitos rios pelo caminho, com certeza iria acabar aprendendo.

Paguei a passagem, iria de avião, 550 dólares ida e volta, válido por três meses. Gastei mais em equipamentos e passagens do que na viagem em si. Foram 660 dólares em equipamento de camping, e mais 600 dólares em equipamento fotográfico. A super vara de pescar com iscas e tudo mais, ficou em 150 dólares. Nos próximos três meses de viagem, gastaria apenas 800 dólares. Não que eu tenha economizado ou deixado de comer, pelo contrário, comia muito bem, aliás numa viagem de bike a alimentação deve ser muito boa. O motivo de eu ter gasto tão pouco é que quase não havia despesas. Eu acampava de graça, me locomovia de graça, e cozinhava a minha própria comida. Eu só punha a mão na carteira quando parava nas cidades e dormia em pensões. E com 60 dólares comprava comida suficiente para uma semana.

2 - Santiago

Finalmente chegou o grande dia, e eu nem estava ansioso. Estava me sentindo distante, quase que anestesiado. Não pensava em quase nada e parecia que esse negócio de viagem à Patagônia nem era comigo. As malas estavam feitas. Coloquei tudo na mochila para caminhada, exceto pelos itens mais valiosos do equipamento que coloquei dentro de um dos alforjes da bike e levei como bagagem de mão.

Meu amigo João Paulo me levou ao aeroporto, aonde nos despedimos rapidamente e fui fazer o check-in. Despachei a bike sem problemas, não cheguei nem a colocá-la em uma caixa, apenas dobrei o guidom e tirei o ar dos pneus, para o caso de uma despressurização no compartimento de bagagem. A bike pesou 13kg, a mochila outros 13kg, e o alforje (que levei como bagagem de mão) mais 10kg. Era permitido despachar 20kg de bagagem mas não tive que pagar nada pelos 6 kg de excesso.

Dei as minhas últimas voltas pelo aeroporto. Engraçado, para mim quando estou em aeroportos sempre parece que já cheguei ao meu destino. Bom, eu já estava sozinho, ainda no aeroporto de São Paulo, mas em poucos momentos ia estar no aeroporto de Santiago, que ia ser igual a qualquer outro, chão de mármore e janelonas de vidro. É isso mesmo, já podia considerar que a viagem começara. Na realidade a viagem já havia começado muito antes, com as primeiras viajadas mentais.

O vôo foi normal, nada de excepcional, nem me lembro qual foi a comida. Cheguei no fim da tarde em Santiago. Foi com grande alívio que eu recebi a minha bike e mochila intactos. Fui direto pegar dinheiro com o cartão de crédito e em seguida telefonar. Tinha o telefone de três anfitriões potenciais para a minha primeira noite no Chile. Não conhecia nenhum deles mas eles sabiam de minha chegada. O único detalhe é que eu estava uma semana atrasado. Conclusão, não encontrei nenhum deles em casa.

Eu não tinha nenhuma informação sobre Santiago, tinha somente o livro que falava sobre as caminhadas na Patagônia, 3000km mais ao sul. Estava na hora de começar a “hablar Espanhol”. Comprei uma passagem de ônibus até o centro e enquanto esperava por ele, me informei sobre algum lugar para ficar. Eu perguntava aonde era o “albergue de la juventud”, mas o cara para quem eu perguntava não me entendia, o que me fez pensar que “albergue da juventude” não é “albergue de la juventud” em Espanhol.

Ele me recomendava ir para uma “hospedaje”, mas “hospedaje” soava caro demais para mim. Eu queria ir aonde o pessoal de mochila se hospedava, e insistia em “albergue, donde van los mochileros, me entiende?”. Finalmente, ele entendeu “mochilero”, e me falou para ir até o “Refúgio de Padre Hurtado”. Eu não sabia se ele estava me entendendo ou não, que história era aquela de refúgio, padre. Ele me garantiu que no refúgio havia outros viajantes de mochila, e que eu não ia ser obrigado a entrar para nenhuma seita.

Bom, peguei o ônibus, segui a indicação e fui até o refúgio. Nesta altura dos acontecimentos já havia anoitecido, e eu pessoalmente não gosto de perambular à noite por uma cidade grande desconhecida, com uma bike e mochila chamando a atenção. De qualquer forma cheguei fácil até o refúgio, todos a quem perguntava sabiam o caminho. Só faltava aquilo, o “Refúgio de Padre Hurtado” era um abrigo para indigentes idosos. O rapaz que estava na recepção quase caiu para trás quando eu perguntei se podia dormir lá.

Ainda tentamos mais uma vez os meus números de telefone, mas não adiantou. O jeito foi dormir lá mesmo. Foi um choque. Sair de casa e cair naquele lugar. Agora sim, com certeza estava viajando, estava acontecendo algo totalmente diferente do que eu imaginara. Havia pelo menos vinte pessoas em cada dormitório, mas ainda havia camas sobrando. O zelador me indicou uma delas.

Havia muitos barulhos, uns tossiam, outros se mexiam nas camas, que rangiam, outros gemiam. No corredor havia mais barulho ainda, gente andando arrastando os pés, gente falando sozinha, e até um gritando, e ficou gritando palavrões boa parte da noite. Ninguém parecia se incomodar com nada. De vez em quando o zelador trazia mais alguém até alguma cama e o ajudava a se deitar.

Demorei a cair no sono apesar de estar super cansado. Havia sido um dia longo, com um final mais longo ainda, e eu tentava digerir tudo isso e entrar em sintonia com um novo ritmo de vida, imprevisível e diferente, todos os dias dali para a frente.

No dia seguinte saí cedo a procura de um lugar razoável para dormir e aprendi que “hospedaje” não era tão caro assim, e encontrei uma por 10 dólares. Tinha um quarto só para mim, até que não estava mal. Dormi a manhã toda e à tarde saí para comprar as últimas coisas de que necessitava.

Santiago é uma cidade agradável, e foi fácil encontrar as lojas que procurava, estavam inclusive na mesma rua, Calle 18. Precisava de uma ferramenta para desmontar o pinhão (catracas) da roda traseira. Não tinha encontrado a ferramenta ideal em São Paulo, que em inglês se chama “Hyper Cracker”. Em português ela nem tem um nome específico. O pinhão necessita de várias ferramentas combinadas para desmontá-lo, a menos que você tenha esse “Hyper Cracker”. Eu queria encontrar a tal ferramenta pois queria evitar carregar coisas em excesso. Mas não adiantou, o pessoal nem conhecia o tal do “Hyper Cracker”. Em relação a equipamentos mais normais, havia uma grande variedade de acessórios e peças. Resolvi esquecer o maldito “Hyper Cracker”, afinal eu só iria precisar dele no caso de algum raio traseiro do lado direito (o lado das engrenagens) quebrar. Se isso acontecesse eu iria precisar pegar uma carona até a oficina mais próxima e improvisar algo.

Eu também precisava de um adaptador de entrada para fone de ouvido, que convertesse sinais mono para sinais estéreo. Esse adaptador é do tamanho de uma tampa de caneta Bic e era de vital importância. Eu tinha pego junto a Rádio Eldorado de São Paulo um gravador com o qual pretendia gravar uns boletins que viriam ao ar no programa “Esporte-Aventura”. Esse gravador também serviria de walkman, e por isso precisava do adaptador, para poder ouvir música em ambos os ouvidos.

Eu estava mesmo com sorte, havia um monte de lojas de equipamentos eletrônicos ao lado das lojas de bike, e não foi difícil encontrar o adaptador.

Faltava-me agora comprar mapas dos parques nacionais que iria visitar, e fui até o I.G.M. (Instituto Geográfico Militar) procurá-los. Os mapas do I.G.M. são muito bons, e tem informações bem precisas sobre o relevo dos parques. Apesar disto, não indicam as trilhas existentes e é necessário colocá-las no mapa à mão para facilitar a orientação (pode-se fazer isso baseando-se em outro mapa que contenha as trilhas).

Dei azar, era sábado e o escritório estava fechado. Desisti também dos mapas pois no meu livro já havia uns mapas básicos dos parques. Se achasse necessário iria procurar outros melhores depois.

Passei o resto da tarde explorando a cidade. Essa é outra vantagem de se viajar de bike, tinha chegado à noite anterior trazendo meu próprio veículo, e podia me locomover livremente com uma facilidade incrível.

Mas o meu destino era a Patagônia e por isso na manhã seguinte já tinha colocado a minha bike no bagageiro de um ônibus e estava a caminho de Puerto Montt, no extremo norte da Patagônia.

Durante a viagem no Chile iria pegar vários ônibus para cobrir distâncias grandes através de áreas que não me interessavam. Colocava a bike em pé dentro do bagageiro do ônibus (basta retirar a roda traseira) e a amarrava com uma cordinha. Normalmente tinha que pagar aproximadamente 5 dólares pelo transporte da bike mas às vezes o motorista nem se preocupava com isso e a bike viajava de graça.

3 - Puerto Montt

Foram 12 horas de ônibus até Puerto Montt. A estrada era razoavelmente plana, asfaltada e com muitos carros. O tipo de lugar onde não me interessava pedalar. Não gosto de estradas de asfalto, nelas me dá vontade de ir rápido, os carros passam o tempo todo em alta velocidade me fazendo sentir como uma tartaruga. Além disto, os carros fazem barulho, me assustam e roubam aquela sensação de contato com a natureza . Ou seja, quanto mais isolada e primitiva for a estrada, maiores são as emoções ao pedalar nela.

Nas estradas de terra há poucos carros e é mais emocionante pedalar. É necessário negociar com o caminho, buscar a melhor trilha para a bike, com menos buracos. Isso ocupa bastante a mente, e as descidas se transformam em uma aventura de verdade pois se você for rápido demais ou não conseguir evitar um buraco maior, pode levar um tombo e se machucar, o que não é muito agradável, especialmente se você estiver sozinho em uma estrada com pouco movimento.

As condições da estrada variam o tempo todo, às vezes o caminho parece até asfalto de tão bom, e às vezes é péssimo e você acaba quase se arrependendo de estar ali fazendo aquele “programa de índio”. Se chover então, pior ainda, a estrada pode ficar péssima.

Mas estes momentos ruins passam rápido, e servem para contrastar e aumentar a alegria dos momentos bons, e gerar uma incontrolável vontade de “quero mais”. Viajar de bike vicia, mas também é uma atividade que você ama ou detesta. Se a idéia te parece um pouco tentadora, é bem provável que você se apaixone irremediavelmente, e com pouco dinheiro possa realizar muitas viagens.

Bom, voltando ao assunto, Puerto Montt é uma cidade portuária com 110.000 habitantes e um lugar exótico para quem está chegando no Chile. há muitas casas de madeira e de telhas de zinco. Nunca havia visto casas de zinco, é realmente muito interessante, é um material leve, fácil de trabalhar e protege a madeira do excesso de umidade. As paredes de algumas casas são totalmente cobertas de zinco.

Puerto Montt serve como base para se explorar a região dos lagos chilenos e também para visitar a Ilha de Chiloé, que na língua dos índios Mapuche que habitam a região, quer dizer “Terra de Gaivotas”. É também de Puerto Montt que saem barcos com destino a Puerto Natales e Punta Arenas, no sul da Patagônia

Tanto na ilha de Chiloé quanto em Puerto Montt, a cultura é intimamente ligada ao mar, e Puerto Montt é famosa pela grande quantidade de restaurantes de frutos do mar. Há também um grande comércio de artesanato, concentrado na zona do porto.

Chegando à cidade fui para uma hospedaje lotada de Israelenses, que sempre encontram os lugares mais baratos para se hospedar. Dividi um quarto com uma sul-africana que havia acabado de voltar da Antártida e me contou sobre a sua viagem . Ela falou que o lugar é simplesmente fantástico, incrivelmente bonito, e que é possível fazer a viagem em barcos da marinha chilena ou em veleiros que levam turistas. Entretanto os preços eram demasiado caros para mim e por isso nem me permiti sonhar com uma esticada até lá.

No dia seguinte fui pesquisar os preços e opções para chegar ao sul da Patagônia. A viagem de barco era a opção mais interessante, demorava três dias e passava bem perto da costa, que é toda recortada por fiordes e tem enormes glaciares que terminam no mar. A paisagem é maravilhosa e intocada pelo homem . Essa viagem é muito popular entre os viajantes, e portanto uma maneira ideal para encontrar pessoas interessantes. A passagem custava 160 dólares, para dividir um dormitório com 25 pessoas, e as refeições estavam incluídas. O destino final era a cidade de Puerto Natales, a apenas 150km do Parque Nacional Torres del Paine.

Apesar disto, optei pelo avião, que custou 100 dólares e me levou até Punta Arenas, 250km mais ao sul de Puerto Natales, e no extremo sul do continente americano. Optei pelo avião pois simplesmente não aguentava mais esperar para começar a pedalar.

No dia seguinte pela manhã cedo peguei o avião. Eu não esperava nada especial deste vôo mas o visual lá de cima foi simplesmente fantástico. Sobrevoamos o Campo de Gelo Sul, a maior concentração de geleiras fora dos Pólos, com uma área de 14.000km quadrados. Eu nunca havia visto geleiras grandes antes, pareciam estradas brancas, azuis, e cinzas cortando as montanhas. Mas é difícil descrever, as dimensões são enormes. Às vezes as geleiras terminam no mar e cobrem uma área enorme com icebergs.

4 - De Punta Arenas a puerto Natales


Punta Arenas é uma cidade portuária com 100.000 habitantes, nas margens do Estreito de Magalhães.

Antes da construção do Canal do Panamá, o único caminho marítimo entre o leste e o oeste dos Estados Unidos passava pelo Cabo Horn ou pelo Estreito de Magalhães, e Punta Arenas foi criada para servir como porto de apoio para os navios que passavam. A cidade teve seu apogeu na segunda metade do século XIX, época da corrida do ouro na Califórnia e também período de intensa expansão no oeste norte americano. Hoje em dia Punta Arenas permanece um importante “cruzamento” de linhas de transporte, tanto marítimo quanto aéreo.

O tempo correspondia às expectativas, estava chovendo e fazia frio quando pousamos. Arrumei uma carona com uma caminhonete que ia até a cidade e fiquei esperando a chuva passar embaixo de um lugar abrigado, enquanto organizava a bagagem na bike.

A bicicleta tinha dois bagageiros, um dianteiro e outro traseiro. Em cada um eu levava dois alforjes (bolsas) pendurados. Em um dos alforjes dianteiros eu levaria, dobrada, a mochila para caminhadas. No outro levaria comida. Nos alforges traseiros iriam as coisas mais pesadas, roupas, panela, fogareiro, equipamento fotográfico. No bagageiro traseiro entre os alforjes, iriam a barraca e o saco de dormir.

Estava quase pronto para sair, mas ainda faltava um monte de coisas. Uma passada no supermercado e fiz compras para 5 dias. Consegui encontrar também um ótimo mapa da Patagônia inteira, ainda por cima plastificado, no centro de informações turísticas. Passei no posto de gasolina e comprei querosene para o meu fogareiro. Fui para a Zona Franca aonde se pode comprar todo o tipo de coisas bem barato e finalmente comprei um par de luvas e um gorro de lã.

Depois dessa maratona de compras, estava realmente pronto. Eram 18:30, mas eu queria finalmente começar a pedalar, e parti. Era fim de Janeiro, dia 28, e haveria luz até as 23:00. Mal podia acreditar, eu estava finalmente pedalando.

A bike estava pesada, ou talvez era eu que ainda não estava acostumado a pedalar com ela carregada. Em São Paulo eu costumava pedalar todos os dias, uma media de vinte quilômetros, mas o esforço para pedalar a bike carregada é muito maior. É normal sofrer um pouco no início de uma viagem, mas com o tempo acaba se acostumando ao esforço Havia mais carros que eu esperava na estrada, e o vento era forte. Não tão forte como eu esperava mas ainda assim era difícil avançar contra ele.

A estrada seguia paralela ao Estreito de Magalhães por alguns quilômetros, e o visual era inspirador. O tempo estava encoberto, mas não choveu. A estrada era asfaltada e seria assim até Puerto Natales, 250km ao norte. Era bom ter asfalto no começo da viagem, tornava as coisas mais fáceis. O terreno era razoavelmente plano e eu estava cheio de vontade de pedalar.

Pedalei três horas e fiz 52km, o tempo passou super rápido. Parei para acampar às 21:30, na beira de um lago, que na realidade era um braço de mar. Armei a barraca e cozinhei um belo macarrão com atum. Estava esfomeado pois nem tinha almoçado com toda a correria da partida.

Depois de comer pude finalmente relaxar. As nuvens vinham do oeste e passavam baixas no céu, querendo chover. Podia escutar o barulho de pequenas ondas que quebravam na margem do “lago”. O vento havia acalmado e a barraca não sacudia, e fui dormir ouvindo o barulhinho das ondas.

Na manhã seguinte o tempo amanheceu mais encoberto ainda. Tomei o meu café da manhã, que ia ser o mesmo pelos próximos três meses, uma panelada de cereais com leite quente, uma delícia, nunca me enjoei dele, e podia pedalar por três horas antes de sentir fome de novo. O tempo estava feio e começou a garoar, foi o que faltava para me convencer a voltar para a cama. Dormi como um bebê até o meio dia e acordei bem na hora, a chuva estava acabando.

O vento estava muito mais forte do que no dia anterior, e logicamente soprava bem no nariz. Apesar de a estrada ser praticamente plana eu só conseguia pedalar a 6km por hora, uma velocidade ridícula.

Para piorar as coisas começou a chover de novo. A chuva era bem leve e não incomodava muito. O problema é que eu precisava colocar a calça e jaquetas impermeáveis, e depois de 10 minutos estava morrendo de calor. As nuvens passavam rápido e a chuva parava e reiniciava a cada meia hora. Eu parava o tempo todo para por ou tirar roupas conforme o tempo mudava e eu tinha frio ou calor. Também me atrapalhei todo tentando tirar fotos do início da viagem e fazer boletins para a Rádio Eldorado. Era uma quantidade exagerada de equipamentos e roupas para administrar. Eu lembrava das minhas viagens de bike pelo Brasil, em como era simples, duas camisetas, nada de blusas ou roupas para chuva, e em cada rio uma piscina para tomar banho.

Bom, o vento continuava a assobiar na minha orelha e eu não podia nem ouvir música por causa do barulho. Para aumentar a minha felicidade, o meu joelho começou a doer. A chuva voltou a cair, o tempo demorava a passar, os quilômetros percorridos praticamente não aumentavam, e a inevitável pergunta me invadiu, “O que é que eu estou fazendo aqui?”.

Eu me perguntava se seria possível que o tempo ficasse sempre daquele jeito, e se ficasse , o que eu iria fazer. Seria estupidez insistir em pedalar se o tempo fosse sempre tão ruim, afinal eu estava ali para me divertir e não para sofrer. Tentei me acalmar pensando que todo começo é difícil, em qualquer atividade, e que mais cedo ou mais tarde as coisas iriam melhorar.

Depois de 4 horas nestas condições, a estrada virou para a direita (oeste), e eu tinha de repente o meu grande inimigo, o vento, a meu favor. Silêncio total, eu não escutava mais nada de vento pois estava pedalando na mesma direção, a 27km por hora. Incrível como o astral pode mudar tão rápido, até a chuva havia parado, e de repente tudo estava perfeito.

Estava me aproximando de um povoado minúsculo e resolvi parar em um botecozinho para tomar alguma coisa quente. Foi bom estar entre quatro paredes, abrigado do frio e do vento. Eu era o único cliente no bar, mas logo chegou um ônibus lotado de turistas e acabou com o sossego. Os turistas eram alemães e não falavam espanhol nem inglês. Coitado do dono do bar, as pessoas falavam todas ao mesmo tempo e ninguém se entendia. O tempo foi passando e alguns começaram a gritar os seus pedidos achando que assim seriam entendidos.

Eu tentei ajudar mas as pessoas estavam quase histéricas, foi bem estranho, afinal não é difícil pedir um chá, café ou chocolate quente. As palavras são até parecidas, mesmo em línguas diferentes.

Resolvi voltar para a minha estrada, um pouco confuso pela cena no bar. Parei na saída do vilarejo para bater uma foto da bike com as casas ao fundo, e enquanto me afastava para bater a foto, o vento derrubou a bike, que caiu por cima do capacete rachando-o.

Não conseguia acreditar. Porque inventei de parar naquele lugarzinho estranho, bem na hora que o vento estava a meu favor! Guardei o capacete, pois mesmo rachado ele ainda podia servir de proteção, e voltei a pedalar, desta vez com o walkman ligado. Agora sim, tudo estava perfeito, o céu estava limpando e eu estava indo super rápido. Pedalei por mais uma hora e pouco e recuperei a minha média, fechando o dia com 81km feitos em 6 horas de pedal.

Parei para acampar atrás de uma pequena montanha que me protegia do vento, e tive a companhia de uns cavalos que pastavam do outro lado de uma cerca e vieram ver de perto o que estava acontecendo.

Não havia nenhum rio por perto e por isso fui até a estrada para parar um carro. O primeiro para quem fiz sinal parou, era uma família chilena com duas crianças pequenas e foram muito simpáticos. Me deram a água que eu necessitava e foram embora depois de uma conversa rápida.

No dia seguinte eu sentia uma leve dor nas pernas, mas era normal pois estava me acostumando ao ritmo da viagem. O que não era normal era a dor que comecei a sentir nos joelhos, a cada pedalada ela parecia aumentar. Já tinha feito 130km e faltavam ainda 120 para Puerto Natales onde estava planejando descansar e talvez até visitar um médico se a dor continuasse a aumentar.

Durante o dia a dor continuou a aumentar e eu não conseguia mais manter um ritmo razoável, estava se tornando difícil pedalar. O vento não estava muito forte mas mesmo assim eu estava sofrendo para avançar.

Eu pensava que talvez fosse melhor pegar uma carona para não forçar demais o joelho. Poderia descansar em Natales até me recuperar. Mas tinha medo que isso demorasse, e eu não tinha dinheiro ou tempo para ficar parado, pagando hospedaje, esperando a dor passar, e de novo comecei a duvidar que poderia continuar a viagem. Me sentia péssimo, seria ridículo desistir logo no começo.

Fiquei até a tarde com esses pensamentos na cabeça, e parei mais cedo para descansar. Já havia feito 64km e poderia chegar em Natales com calma no dia seguinte.

Estava me aproximando de um rio, e havia placas indicando que era um bom local para pescar. Seria uma boa oportunidade para testar o meu talento de pescador e ao mesmo tempo desviar o pensamento do meu problema no joelho. O local era lindo. Havia uma floresta de Lenga, uma espécie de pinheiro com tronco e galhos torcidos, como que moldados pela força do vento. As florestas de Lenga nunca são demasiado espessas e é possível caminhar entre as árvores sem problemas. O chão era coberto de capim alto, que as vezes chegava à altura da cintura. O céu estava limpo e a luz do sol penetrava através das árvores realçando o verde do capim. Era um colorido bem delicado, verde claro da grama e das copas das árvores, que de vez em quando deixavam espaço para o azul do céu.

Este pequeno paraíso tinha dono, e fui pedir permissão para acampar e pescar nas suas terras. Ele estava cuidando dos cavalos e não ficou surpreso em me ver. O que eu não sabia ainda é que a Patagônia é muito frequentada por ciclistas do mundo todo, e por isso as pessoas reagem com naturalidade ao serem abordadas.

Ele me indicou o melhor lugar para acampar e me recomendou cuidado caso fosse fazer uma fogueira.

Os incêndios florestais são um grave problema na Patagônia, pois no verão é muito seco e no chão das florestas há grande quantidade de madeira. Como o mato não é muito denso, o vento circula livre espalhando o fogo rapidamente. As estatísticas mostram que a maioria dos incêndios são provocados por turistas descuidados.

Antes de montar a barraca eu queria pescar, estava curioso para saber se as coisas podiam ser tão ideais como eu pensava. Eu já estava viajando de uma maneira maravilhosa (vamos esquecer a dor no joelho um pouquinho). Se além disto eu pudesse pescar peixes para o jantar, era bem provável que eu me transformasse para sempre em um ciclista nômade.

Cheguei ao rio, aliás, Rio Rubens, para ser mais preciso. Procurei pelo melhor local, as trutas gostam de ficar nos poços profundos que se formam nas curvas dos rios, e eu logo achei um. Selecionei uma isca tipo colher, coloquei na linha e fiz o lançamento. Engraçado, não via a isca cair na água. Lógico que não, ela estava enroscada na minha calça. Bom, tudo bem, vamos tentar de novo, desta vez com um movimento mais aberto. Cadê a isca? De novo caída aos meus pés, o que foi desta vez? Acontece que eu estava lançando a isca contra o vento, que estava bem forte no fim da tarde. A isca era leve demais e por isso não ia longe. Troquei a isca, colocando a mais pesada que tinha. Agora sim, consegui fazer os lançamentos bem no meio do rio, corrente acima.

Fiquei aperfeiçoando os meus lançamentos. É bem simples, a técnica é lançar longe e recolher a linha lentamente, até fisgar alguma coisa. Eu não sabia ainda, mas o horário para pescar trutas é muito importante, elas não gostam de muita luz e são muito mais fáceis de serem apanhadas quando o sol está se pondo ou nascendo. Havia peixes no rio, inclusive dava para ver uns peixinhos pequenos que saltavam o tempo todo. Eu lançava a isca exatamente aonde eles estavam na esperança de fisgar alguma coisa maior.

De repente, havia algo no meu anzol. Comecei a recolher a linha rapidamente até que ficou muito pesado para a carretilha, que começou a “patinar”. Dei um tranco e senti que havia fisgado algo bem pesado. Não, não era uma bota velha, era apenas um galho. Não desisti, continuei tentando até que fisguei algo bem mais pesado no fundo do rio e arrebentei a linha, perdendo a única isca pesada o suficiente para aquele vento.

O jeito foi desistir, teria que conversar com alguém para saber direito como pescar. Quando fui comprar o equipamento em São Paulo o vendedor estava muito seguro em relação às iscas que eu precisaria, me vendeu umas incríveis, idênticas a sapinhos, baratas, grilos, fora as iscas de “colher” e “mosca”. Cada uma deveria enganar o peixe de maneira diferente e era adequada a uma situação especifica. Mas todas elas eram leves demais para a Patagônia, eu precisava de iscas mais pesadas ou então teria que arremessar a favor do vento.

Bom, me resignei em comer o tradicional macarrão com atum, fiz uma bela fogueira e me pus a pensar na vida e na viagem que estava fazendo.

Realmente não havia muitas opções de coisas para se fazer, e quase toda a minha energia estava voltada para a realização das tarefas necessárias para a execução da viagem. Era uma rotina diferente da que eu levava na cidade, muito mais básica, mas com grandes desafios e recompensas. Era duro lutar contra o vento e ter que pedalar para avançar. Também era cansativo ter que montar acampamento todas as noites e arrumar o equipamento todas as manhãs, mas esse era o preço que tinha que pagar para usufruir daquela liberdade, a total imersão em uma natureza praticamente intocada. Era muito bom estar ali, na beira de uma fogueira, no meio do mato, com um lindo rio a 20 metros de distância. A minha felicidade era composta por poucas coisas, mas essas coisas se combinavam de infinitas maneiras diferentes, e sempre era possível se surpreender com a beleza, pureza, e força da natureza .

Frequentemente eu era invadido por uma profunda calma e sensação de plenitude, uma convicção de que a vida e a felicidade são coisas bem simples. Incrível como podia facilmente sentir isso em meio à natureza . Me lembrava dos meus dias em São Paulo, a eterna correria, que nos envolve até no lazer, um lazer muitas vezes feito de forma neurótica, consumista, como se tivéssemos que conquistar a felicidade para toda a vida em uma única noite.

Esse não era só o meu caso, talvez isso fosse mais verdadeiro para outras pessoas. Qualquer um pode sair à noite e ver a quantidade de gente que literalmente se esborracha em postes por estar bêbado, correndo atrás de satisfação, uma satisfação que não persiste.

O que persiste é a sensação de que está faltando alguma coisa. Aonde é que esta coisa vai ser encontrada? É difícil dizer, cada um tem uma resposta, mas de uma coisa eu tenho certeza, a maneira neurótica como vivemos nas grandes cidades não nos ajuda a perceber aonde está a verdade ou a essência das coisas.

Cada um procura inspiração em uma fonte diferente, para mim ela vem no contato com a Natureza e os elementos. Isso é tão claro para mim que eu Frequentemente pensava em como ia ser bom se toda a estrutura excessivamente artificial que o Homem criou desaparecesse.

Nada de luz elétrica, computadores, carros, aviões, fábricas, escolas, governos, medicina, química, bolsa de valores, favelas, plástico, lixo, polícia. A lista é enorme. Se o homem pudesse negociar a sua sobrevivência apenas com a natureza, tudo seria melhor, e o mundo funcionaria conforme uma lógica mais simples, ao invés de ser um caos total aonde a irracionalidade e interesses mesquinhos prevalecem, ao custo de um planeta que vem sendo destruído e ao custo de milhões de vidas de pessoas que passam por necessidades e dificilmente podem alterar os seus destinos.

Mas o Homem inventou o dinheiro, e todo um universo relacionado a ele. Hoje em dia não podemos mais ir ao rio e pescar o nosso jantar, e nem cortar uma árvore para construir a nossa casa. Temos que trabalhar em uma fábrica ou em um escritório o mês inteiro, e obter a grana, que nos dá a liberdade e condição de sobreviver neste mundo artificial, que nos distanciou do nosso estado natural.

Somos animais, viemos da natureza e pertencemos a ela, que deveria ser a coisa mais preciosa para nós. Será que valeu a pena todo este trabalho para criar todas essas coisas?

Agora é tarde demais, as nossas invenções já estão aí, o mundo está super povoado de pessoas e é impossível voltar a um estilo de vida mais primitivo. Mas ainda está ao nosso alcance reeducar o uso da tecnologia e rever os nossos valores e prioridades. Temos a tecnologia e poder de comunicação para trocar idéias e conversar, temos os números e jornais que nos mostram claramente que estamos nos destruindo, em um ritmo cada vez mais acelerado.

Temos que fazer algo realmente, não basta mais ficar reconhecendo os problemas, temos que agir, não há tempo para ser desperdiçado. O que eu posso fazer? A única coisa que me vem em mente é escrever, e torcer para que faça alguma diferença.

Pois é, vejam só quantas coisas é possível enxergar olhando para as chamas de uma simples fogueira.

No dia seguinte levantei acampamento às 11 horas pois a manhã inteira esteve chovendo. Quando estava entrando na estrada encontrei um casal de ciclistas parado na beira da estrada. Eles estavam indo na mesma direção que eu. Eram o Cris e a Jeanine, suíços, que estavam pedalando na América do sul a quatro meses. Eles eram super simpáticos e continuamos a pedalar juntos em fila indiana, para ter menos problemas com o vento.

Eu não conseguia me posicionar de maneira adequada para me proteger do vento e também estava louco para conversar com alguém, por isso ficava mudando de posição e conversando com os dois.

Cris era mecânico de bicicletas e já havia feito outras viagens de bike. Jeanine era secretária de alguém no ministério dos esportes na Suíça. Era a primeira viagem dela em uma bicicleta. Eles já haviam pedalado algo como 3000 km, um sinal de que ela havia se adaptado muito bem à vida em duas rodas.

Fiz uma maravilhosa descoberta nesta manhã, o meu joelho não doía nada se eu o mantinha aquecido. Fiz essa descoberta por acaso. Eu sempre pedalava de calças curtas e não sentia frio. Apesar disto, o vento era bem gelado e estava resfriando os tendões e ligamentos do joelho. Nesta manhã pedalei com as calças impermeáveis, que esquentavam bastante, e a dor desapareceu por completo.

Comentei a descoberta com os suíços e para a minha surpresa eles também estavam tendo o mesmo problema. Combinamos de procurar umas joelheiras ou algo parecido quando chegássemos em Puerto Natales.

Estávamos quase chegando em Natales e o Cris me perguntou se eu gostaria de tomar um mate. Mate é o chimarrão na Patagônia, só que a erva utilizada por eles é menos forte e amarga que a erva que usamos no Brasil. Eu não sou muito fã de mate, ou chimarrão se você preferir, mas naquele frio qualquer bebida quente cairia muito bem.

O que eu não entendia era a pressa em tomar algo. Afinal de contas estávamos quase chegando em Natales, faltavam 15km com muita descida, não compensava parar, montar o fogareiro, ferver a água, etc., seria muito trabalho.

Mas o Cris tinha uma solução para estes problemas. Estávamos chegando a um posto policial e segundo o Cris eles certamente teriam água quente. Eu achei a idéia ótima, se ela funcionasse. Eles me contaram que frequentemente faziam isto, simplesmente paravam nas fazendas ou qualquer lugar habitado e pediam água para um mate. As pessoas se surpreendiam um pouco com dois ciclistas gringos falando espanhol, mas eram sempre super hospitaleiras.

Além de pedir água quente, Cris e Jeanine às vezes pediam para usar o forno para fazer pão. O irmão do Cris era padeiro e o havia ensinado a fazer um ótimo pão integral. Isso surpreendia os fazendeiros mais ainda, mas todos saiam ganhando. Os fazendeiros conheciam um pouco sobre a Suíça, tinham um pouco de companhia para quebrar a solidão, e ganhavam um pão delicioso. Além de aprender a receita, é claro. Já Cris e Jeanine conseguiam fazer o seu pão, e tinham uma ótima oportunidade de conhecer bem de perto a cultura gaúcha e praticar Espanhol, que aliás já falavam bastante bem.

Bom, chegando ao posto policial eu esperei que Cris fizesse os contatos. Não é que funcionou mesmo? Entramos e fomos levados a uma sala aonde nos sentamos em um sofá. A água foi posta para ferver enquanto nós conversávamos com um dos policiais. Aquele posto policial servia de polícia fronteiriça, pois naquele ponto a estrada se bifurcava e levava à Argentina, a apenas 17km de distância. Na minha opinião havia policiais demais, algo como oito, para cuidar de uma estrada aonde havia pouquíssimo movimento. De qualquer forma tomamos o mate, que desceu muito bem, e continuamos o nosso caminho.

Assim que começamos a pedalar começou a chover, a primeira chuva de verdade que vi até então. Nas outras vezes as chuvas foram muito leves, uma garoa fina, sempre acompanhada de muito vento que acabava me secando na medida em que me molhava, ou seja, eu praticamente não me molhava. Bom, agora era diferente, o vento estava leve e a chuva grossa. Paramos para colocar as nossas roupas impermeáveis, e eu fiz a segunda descoberta do dia. Só que foi uma descoberta desagradável; A minha jaqueta e calças “impermeáveis” não eram tão impermeáveis assim. Seguravam a chuva por cinco minutos e aí eu já começava a sentir a água me molhando. Isso era mal pois eu estava levando um número mínimo de peças de roupa e era fundamental ter as roupas de baixo secas quando eu parasse, pois só tinha uma blusa que esquentava bem. Enquanto estava pedalando eu não tinha problemas com o frio mas era vital me agasalhar bem quando parasse. Desta vez não ia ser problema pois estávamos chegando na cidade e teríamos abrigo, mas eu tinha imaginado que estas roupas iam me possibilitar pedalar debaixo de chuva, o que não era verdade, e isso me tornava dependente de bom tempo para poder pedalar.

Comentei o assunto com Cris, que me disse que tinha o mesmo problema. A verdade é que a maioria dos materiais “impermeáveis” perdem a sua impermeabilidade depois de um certo tempo, especialmente se lavados com sabão que não seja de PH neutro ou se lavados com certa violência, com escova ou sendo centrifugados. Esse não era o nosso caso, aliás eu até evitava lavar a jaqueta exatamente para não ter esse tipo de problema.

Para uma roupa ser realmente impermeável ela deve ser feita de borracha ou de nylon resinado. O problema com este tipo de material é que eles não permitem a evaporação da transpiração e a pessoa acaba se molhando com o próprio suor. Cada pessoa deve definir as suas prioridades. Os materiais impermeáveis que permitem a evaporação da transpiração são muito bons contra o vento e neve, além de serem leves e práticos, mas não oferecem proteção total contra a chuva e exigem cuidados especiais na lavagem.

Continuamos a nos molhar com a chuva, mas descíamos bem rápido e podíamos ver a cidade perfeitamente.

5 - Em Puerto Natales

Puerto Natales fica nas margens de um braço de mar chamado Seno Última Esperanza. Aliás Última Esperanza também é o nome da província, ou estado, onde estávamos. Nomes bem sugestivos, e o visual correspondia à imaginação. Do outro lado do Seno, que tem aproximadamente 2km de largura, havia montanhas altas com os picos cobertos de neve. Naquele exato momento estava nevando lá em cima, pois a chuva aqui embaixo era neve em altitudes mais elevadas.

Natales é bem pequena, com apenas 8.000 habitantes, e não havia nenhum sinal de presença humana fora dos limites da cidade. O tempo chuvoso contribuía para dar um ar mais sombrio ainda ao lugar, mas isso só aumentou a minha animação. Eu estava no lugar certo, fazendo a coisa certa, e apesar do vento, chuva e dor no joelho, tinha conseguido percorrer 250km, o que queria dizer que eu conseguiria fazer quantos quilômetros eu me propusesse a fazer.

Não havia ninguém na rua por causa da chuva e fomos diretamente até a casa de informações turísticas, perguntar por algum hotel ou “hospedaje” barato.

Estávamos de volta a civilização, havia aquecimento na casa. Incrível como é gostoso ter quatro paredes te isolando da chuva e do frio. Ficamos nos esquentando por um bom tempo, até que a chuva diminuiu e fomos até a Hospedaje Casa Cecilia, a apenas dois quarteirões de distância.

Havia um enorme movimento na hospedaje, eu não conseguia entender de onde tinham saído tantos turistas, suíços, alemães, franceses, e até um grupo de três brasileiros! Tivemos até um pouco de dificuldade para conseguir um quarto.

Depois de um maravilhoso banho quente e uma sopinha, fui me encontrar de novo com o Cris e a Jeanine, que tiveram que pegar um quarto em uma outra pensão que pertencia à mesma dona.

Os preparativos para o almoço já estavam a pleno vapor, fiquei impressionado com a quantidade de equipamento que eles carregavam. Eles tinham uma pequena pasta que continha vários tipos de tempero, inclusive óleo e vinagre, coisas que são difíceis de levar em uma bike pois podem vazar. Eles estavam fazendo uma salada enorme e um prato de macarrão maior ainda. Uma garrafa de vinho já tinha sido trazida por um francês, e a conversa rolava solta.

Incrível o quão rápido nossa situação mudou. Apenas duas horas atrás estávamos pedalando na chuva e no frio, sozinhos, sem imaginar quantos viajantes havia tão perto de nós. Para mim foi uma grande surpresa, eu achava que a Patagônia seria um lugar difícil de se viajar e que haveria pouco turismo ali. Entretanto, as hospedajes estavam lotadas. Janeiro é alta temporada na Patagônia. Puerto Natales é o ponto de partida para se visitar o Parque Nacional Torres del Paine, o mais famoso no Chile e talvez na América do Sul também . Todos os dias há ônibus que vão e voltam ao parque , que se localiza a 150km ao norte de Puerto Natales. O resultado disto é que todos os dias conhecíamos novas pessoas, e passávamos horas matando a nossa fome de conversar.

O tempo estava péssimo, choveu três dias seguidos, chegamos exatamente na hora certa. Usamos o tempo para descansar, comer bem, e fazer umas joelheiras para nos proteger do frio. Encontramos uma senhora que fazia blusas com lã de carneiro, e encomendamos umas joelheiras com ela. Foi uma ótima idéia pois nunca mais tivemos problemas com o frio ou dor.

No mesmo dia em que chegamos a Natales, chegaram outros quatro ciclistas. Dois alemães que já haviam encontrado os suíços antes pela estrada, e mais um argentino, e um americano. Eu mal podia acreditar, parecia até que a grande moda era pedalar na Patagônia. Na realidade o que acontece é que aquela era a melhor época para se pedalar por ali, e por isso havia aquela concentração de ciclistas.

Era curioso como cada ciclista tinha seu estilo próprio e uma história diferente. O argentino era o “hippie” da turma, cabelo e barba enormes, o equipamento todo remendado, e era quem mais pedalava, Tinha, como ele dizia, “fome de comer estrada”, e partiu no dia seguinte ao que chegou, junto com o americano. O americano era bem reservado e não deu para saber muito dele.

Os Alemães estavam iniciando a viagem deles e, como eu, tinham três meses para pedalar. Apesar disto tinham uma grande distância para percorrer e uma data certa para chegar a Quito, no Equador, a não sei quantos mil quilômetros mais ao norte. Eles teriam que pegar carona ou ônibus para cobrir algumas partes do percurso. Estavam com pressa e também saíram no dia seguinte.

Eu não saí até que o tempo melhorou, e pude ver as marcas dos pneus deles na lama durante os 100km até o Parque Torres del Paine. Com certeza eles sofreram bastante na chuva, mas nunca soube dos detalhes pois nunca os reencontrei. Acho que eles nem ficaram no Parque pois se o tivessem feito, eu os teria encontrado.

Assim que o tempo melhorou eu me preparei para partir, e comprei uma capa de chuva de verdade, daquelas amarelas emborrachadas. Não queria arriscar passar frio em caso de chuva. Ia deixar os suíços para trás, eles estavam curtindo passar o dia todo jogando conversa fora, mas eu achava que as conversas estavam começando a se repetir demais, já havia contado a minha viagem e ouvido as dos outros centenas de vezes, e estava começando sentir “fome de estrada” de novo.

Fiz compras suficientes para 15 dias, pois no parque Torres del Paine só havia um armazém que cobrava preços bem caros e não tinha muitas coisas. Seguindo o exemplo dos suíços encrementei a minha cozinha com três caixinhas de filme fotográfico contendo temperos como curry, noz moscada e canela. Também levei “Aji chileno”, um molho de pimenta bastante semelhante a chili.

Além das novidades, comprei também o tradicional. Para o café da manhã musli, que na realidade não existia. Eu comprava aveia e misturava com uvas passas, leite em pó e canela, era uma delícia. Todas as manhãs comia uma panelada e podia pedalar até uma da tarde sem sentir fome. Na hora do almoço comia pão. Acabei até aprendendo a receita dos suíços e fazendo o meu próprio pão para este trecho. Levava queijo, salame, e um delicioso doce de leite para passar no pão. Um chocolatinho fazia a sobremesa, e para beber levava suco tipo “Tang”, que por sinal era muito bom. Para o jantar levava macarrão ou purê de batatas desidratado, e carne de soja desidratada. Para fazer molho para o macarrão usava sopas tipo “Maggi”, e assim podia sempre fazer uma combinação diferente destes ingredientes, nunca me enjoando do que comia. Vale lembrar que com a fome que sentia no fim do dia, comeria até macarrão sem molho nenhum. Eu levava ainda cebola, alho e cenouras. Não levava nada de frutas pois ocupavam muito espaço e são difíceis de conservar sem amassar.

Demorei um bom tempo para colocar todos os mantimentos na bike, que ficou mais pesada do que nunca. Depois de comprar querosene para o fogareiro estava finalmente pronto e fui me despedir dos suíços, mas no caminho arrebentaram dois aros da roda traseira. Saco, já era de tarde e eu não aguentava mais ficar em Natales. Fui empurrando a bike até a hospedaje dos suíços para que Cris me ajudasse. Os raios quebraram no lado direito da roda, ou seja, o lado difícil de arrumar sem a ferramenta adequada, o famoso “Hyper Cracker” que eu não conseguira comprar em Santiago.

O Cris tinha a ferramenta e arrumamos a bike rapidinho. Passei em uma bicicletaria e comprei mais alguns raios de reserva pois agora a bike estava mais carregada e a estrada seria de terra.

Finalmente estava de volta à estrada, às 18:30, o mesmo horário que eu saíra de Punta Arenas.

6 - De Natales a Torres del Paine


De Natales até o Parque Torres del Paine deveriam ser algo como 100/150km, não sabia com certeza pois estava seguindo uma estrada que não estava aberta ao tráfego normal e nem constava nos mapas. A estrada ligava Natales a fazendas e depois seguia até o Parque, mas não havia pontes e por isso ela estava fechada para o trafego de veículos convencionais.

Mas esta estrada era 50km mais curta que a estrada normal e passava por uma área muito mais bonita e interessante. Quem me deu essas informações foi o Cris, que por sua vez tinha ouvido falar dela através de seu irmão, que havia feito aquela viagem alguns anos atrás. Só não sabíamos se a distância era de 100 ou 150km, mas sabíamos que os rios sem ponte eram pequenos e “atravessáveis”.

O tempo estava encoberto e ameaçando chover, mas se manteve seco. Estava pedalando em um vale estreito, com montanhas cobertas de neve à minha volta. A estrada era de terra e não havia nenhum carro. Eu estava sozinho de novo e a sensação era ótima, parece que a aventura aumenta quando se está sozinho.

Havia alguma coisa estranha no ar e demorei a perceber o que era. É que não havia nada de vento, e o silêncio era total quando eu parava de pedalar. Era a primeira vez que isso acontecia e o silêncio dava uma aparência diferente à paisagem, a fazia parecer delicada e misteriosa, até mesmo um pouco ameaçadora por causa das nuvens baixas.

Era muito bom perceber essas coisas, a natureza estava sempre se renovando e me impressionando de uma maneira diferente, bonita e inesperada. Às vezes a diferença era sutil, outras vezes mais forte e dramática.

Depois de três horas de pedalada e 40km percorridos, parei para acampar na beira de um riozinho, sobre o qual havia uma ponte. Somente perto do Parque é que os rios seriam sem ponte. Achei lenha para uma fogueira e depois de jantar ainda fiquei curtindo o silêncio daquela noite meio sombria na beira do fogo.

Na manhã seguinte, para minha surpresa, o céu amanheceu limpo e o vento estava praticamente ausente. Comecei a pedalar com vontade e após 10km parei para observar melhor o horizonte à minha frente. Eu podia ver, a uma grande distância, umas montanhas com formas bem estranhas e recortadas. Elas aparentavam ser pequenas mas eu sabia que era o efeito da distância, pois aquelas deveriam ser as famosas Torres del Paine, vistas à uma distância de aproximadamente 60km. Elas estavam cobertas de neve e por isso eram tão fáceis de perceber em contraste com as colinas que as rodeiam.

A estrada era bastante plana e eu consegui manter uma boa velocidade, logo chegando às margens de um lago de águas azuis bem claras.

Continuei a pedalar e logo encontrei o primeiro rio sem ponte. Ele era pequeno e passei no embalo, o fundo era plano e foi fácil de atravessar. Do outro lado do rio havia um rebanho de vacas, que ao me verem em meu cavalo metálico ficaram assustadas. Elas estavam acostumadas a ver cavalos de carne e não de ferro, e fugiram em disparada.

As vacas não fugiam para longe da estrada, apenas corriam uns 500m pela beira dela e ficavam me esperando, para depois correr de novo. Eu tentava ultrapassá-las mas não conseguia, e ficamos brincando de pega-pega por um bom tempo.

Finalmente elas cansaram da brincadeira e me deixaram ultrapassar. Logo em seguida encontrei um portão, que precedia uma ponte sobre um rio bem grande. “É isso, estou entrando no parque”, pensei. Segundo o meu mapa o parque se iniciava logo após um grande rio. Mas eu estava enganado, ainda tive que pedalar mais uns 20km até chegar ao “Rio Grande”, que marcava a fronteira do parque. O terreno agora era cheio de pequenas montanhas bem íngremes e eu tinha que descer para empurrar a bike em muitas das subidas. Podia ver as marcas profundas deixadas pelos ciclistas que vieram antes de mim e ficava imaginando como eles deviam ter sofrido para passar por ali.

Após mais de duas horas nesse sobe e desce, finalmente cheguei a uma espécie de platô e podia ver de novo as Torres. Parecia que nunca ia alcançá-las. Elas estavam bem visíveis mas ainda longe.

Lá pelas 19:30 eu finalmente cheguei ao famoso “Rio Grande”. Na verdade o rio era enorme, e a correnteza era forte. Felizmente havia uma ponte sobre o rio pois ele era demasiado largo e profundo para ser atravessado a pé ou nadando. Armei a minha barraca do lado de fora do Parque, antes do rio, e devorei o jantar rapidamente.

Resolvi tentar de novo a minha sorte como pescador pois tinha visto umas pessoas pescando na ponte. Eu, muito otimista, reuni lenha para a fogueira na qual ia assar a minha primeira truta. Preparei o equipamento de pesca e fui para a ponte, ao lado de um pescador argentino. Ele era jovem mas tinha cara de quem sabia o que estava fazendo, pelo menos o equipamento dele estava bem usado. Ele me falou que o horário era ideal para pescar, as trutas gostam de pouca luz e por isso são mais fáceis de apanhar de manhã cedo ou no fim da tarde. Apesar disto ele estava tentando pescar ali há dois dias e não teve nenhuma sorte.

Estávamos sobre a ponte, de costas para o vento e por isso era fácil lançar a isca na água. Se eu fosse apanhar algo, teria que ser naquela tentativa. Mas o tempo foi passando e a luz foi ficando bem fraca. Às 22:00 o meu companheiro argentino resolveu desistir. Eu resolvi ficar, talvez pudesse contar com um pouco de sorte de principiante.

Assim que ele foi embora uma truta mordeu a isca. Eu senti um tranco na linha e puxei a vara para fisgar o peixe. Imediatamente comecei a recolher a linha, sentindo o peso da truta. O peixe deu um enorme salto para fora d’água, parecia que estava saltando em câmara lenta de tanto tempo que ele ficou no ar. Era mesmo uma truta, eu lembrei das fotos que tinha visto. Era linda e logicamente enorme, a maior do rio com certeza. Ela não gostou de eu a estar puxando corrente acima e puxou com força no sentido contrário, ganhando linha de volta.

Era guerra, eu regulei a carretilha para dificultar o trabalho da truta e de repente ela parou de puxar. Era minha vez, eu recolhia a linha como um louco, e a distância entre nós ia diminuindo aos poucos. A truta é um peixe famoso por ser combativo mas eu estava ganhando terreno apesar de ela conseguir recuperar linha de vez em quando.

Foi então que eu comecei a pensar em como tirar o peixe da água. Eu estava sobre a ponte a uns dois metros acima do nível da água. Era muita altura para levantar um peixe, eu teria que descer até a margem, mas era impossível pois havia uma árvore aonde a linha iria enroscar se eu tentasse descer. A única possibilidade seria saltar da ponte para a margem, mas lá estava a maldita árvore. A solução então seria saltar dentro da água, na beira do rio, mas era perigoso quebrar um pé nas pedras do fundo. Eu pensava tudo isto enquanto enrolava a carretilha como um louco, e o peixe estava se aproximando. A culpa era daquele pescador que eu estava imitando. Onde já se viu pescar em cima de uma ponte de onde não se pode descer!

Bom, o peixe estava agora embaixo de mim, e nadava quase calmamente, deixando a nadadeira dorsal aparecer fora da água às vezes. Dei uma outra olhada para as pedras sob a água onde teria que saltar mas não tive coragem, e me preparei para puxar o peixe.

Foi ridículo, o peixe nem saiu da água. A linha arrebentou com ele ainda dentro da água, e ele provavelmente iria morrer à toa com uma isca pendurada na boca. Eu estava possesso, queria gritar de raiva, queria pular de cabeça atrás da filha da truta, quebrar a vara, jogá-la no rio, mas me contive e voltei para a minha barraca.

Acendi a fogueira, mas ficar olhando para o fogo não me acalmou. Fui para a cama ouvindo uma música bem calma no walkman, e acabei pegando no sono pois estava super cansado. Aquele havia sido o dia mais longo até então, 5 horas de pedal para cobrir 50km.

7 - Torres del Paine



Na manhã seguinte a primeira coisa que me veio à cabeça foi a truta, mas felizmente eu teria um monte de coisas nas quais pensar e com as quais me distrair. Iria finalmente entrar no parque, começar a caminhar e chegar até as famosas torres, que pareciam dentes de um jacaré gigante de boca aberta.

O Parque Torres del Paine é provavelmente o parque nacional mais famoso na América do Sul, tem uma área de 2420km quadrados, e foi declarado patrimônio da humanidade pela Unesco em 1978. O nome Paine tem suas origens na língua dos índios Mapuche e quer dizer azul claro. Provavelmente a área recebeu esse nome por causa dos inúmeros lagos glaciais de cor azul claro que existem por lá.

O maciço do Paine atinge uma altura de mais de três mil metros e se destaca do relevo circundante, que tem uma altura média de apenas 100 metros. As Torres do Paine são três enormes colunas de granito rosado.

Existe uma trilha que circunda o maciço inteiro, tem 86km de extensão e leva uma média de 8 dias para ser percorrida. Existem caminhadas adicionais que se desviam da trilha principal e fazem com que o tempo de caminhada e a distância possam ser maiores caso se queira explorar o parque mais profundamente.

O parque é bastante visitado por turistas chilenos e do mundo inteiro, e tem vários campings e refúgios ao longo do percurso. Existem até hotéis de luxo dentro do parque, uma infra-estrutura impressionante.

Atravessei a ponte sobre o Rio Grande, que estava bem destruída. Era impossível atravessá-la de carro, ou mesmo pedalando, pois a maioria das tábuas havia caído. No pedaço mais crítico havia somente duas tábuas. Sobre uma coloquei a bike, e eu ia caminhando na outra, empurrando a bike. Não havia condição de pedalar. O vento soprava forte e por isso atravessei bem devagar tomando muito cuidado para não perder o equilíbrio e cair na água.

Comecei a pedalar, com as Torres diretamente à minha frente. Eu estava me dirigindo ao Lago Grey, aonde havia uma guarderia, o local aonde se encontram os guarda parques. O plano era deixar a bike lá, colocar a bagagem na mochila, e fazer uma caminhada até o Glaciar e Lago Pingo.

A distância até a guarderia era de apenas 25km, mas eu não imaginava quanto esforço ia me custar para chegar até lá. O grande problema foi o vento, que começou a soprar forte já pela manhã. Ele vinha do lado esquerdo e eu tinha dificuldades para pedalar em linha reta. A estrada estava em más condições e a melhor parte para se pedalar era o extremo direito dela. Era uma pedalada delicada pois o vento ameaçava me empurrar para fora da estrada. Fui me acostumando e até aumentei um pouco a velocidade pedalando o mais rápido que podia. Foi uma imprudência, e logo paguei por ela. Uma rajada mais forte me empurrou um pouquinho para a direita e quando dei por mim estava voando, mais precisamente aterrissando de lado no barranco que havia ao lado da estrada, e rolando igual a um jogador de futebol quando quer encenar uma falta. Tudo foi muito rápido, mas felizmente não me machuquei. A bike também estava inteira mas a parte esquerda do bagageiro dianteiro havia entortado para fora. Desentortei o quanto pude com a mão, mas com isso o metal deu uma rachadinha, que comprometeu a resistência do bagageiro. Teria de encontrar algum lugar para soldá-lo. A minha sorte é que ele era de metal, que é um material fácil de soldar, e não de alumínio para o qual necessitaria de uma solda especial. De qualquer forma eu precisaria de sorte para encontrar uma máquina de solda, talvez em um dos hotéis ou com os guarda parques.

Deixei o problema para depois, por hoje daria para chegar até a guarderia sem complicações. Faltavam então 18km, só que a estrada virava para a esquerda e eu comecei a ter o vento bem de frente. Parecia até que o vento estava aumentando, eu tinha que pedalar em primeira marcha, fazendo a ridícula velocidade de 6km por hora! Daquele jeito eu levaria três horas para chegar até a guarderia!

Não havia nada a fazer, a não ser pedalar. O vento continuou aumentando e depois de mais ou menos uma hora ficou difícil pedalar. Eu estava indo tão devagar que se tornava complicado manter o equilíbrio em cima da bike, e acabei levando outro tombo.

A roda da frente oferecia bastante resistência ao vento, e se eu a desalinhasse um pouco, o vento a dobrava com violência para o lado. Como a bike estava carregada e eu estava andando bem devagar, era difícil evitar cair. A solução foi andar a pé, empurrando a bike, em plena planicie!

O vento já estava muito forte, mas ia aumentar ainda mais. Eu estava finalmente conhecendo os famosos super ventos da Patagônia. E já que eles demoraram para aparecer, estavam soprando com vontade. Lá estava a natureza com outro de seus espetáculos surpreendentes. As Torres continuavam ali ao lado, lindas, impassíveis, mas as nuvens sofriam com a violência do vento. Elas eram espremidas contra as Torres, e forçadas a subir as suas paredes. Quando finalmente superavam os cumes, seguiam sua louca corrida. Parecia até que as Torres eram chaminés de um trem a vapor, deixando um rastro de fumaça inclinado no céu.

Vendo isso eu entendi o motivo de o vento estar tão forte. Eu estava em um vale, entre o Maciço das Torres e uma outra montanha. O vale funcionava como um funil, multiplicando a força do vento. O vale se estreitava ainda mais lá na frente e a estrada deixava de ser plana. Havia uma subida, não muito íngreme, mas com uns dois quilômetros de comprimento.

Mas eu ainda não tinha chegado lá. O vento agora estava levantando nuvens de poeira e pequenas pedras quando soprava mais forte. Eu podia ver as rajadas se aproximando pois elas levantavam uma verdadeira nuvem de poeira da estrada. Eu me inclinava para a frente, freiava a bike, e fechava os olhos até as rajadas passarem.

Não havia nenhum lugar onde se esconder do vento, tudo era absolutamente plano, teria de continuar de qualquer maneira. Na subida a coisa piorou ainda mais, era difícil subir andando, o melhor era correr pois aproveitava melhor a força da inércia. Eu aguentava correr algo como vinte metros e tinha que parar para descansar. Foi em uma destas paradas para descansar que me distrai e desalinhei um pouco a roda da frente em relação ao vento. Foi o suficiente para que a bike fosse jogada para o chão de novo. Eu tentei evitar que ela caísse e acabei indo para o chão junto! Era o cúmulo, cair de bike estando em pé, no chão!

Com muito esforço, acabei chegando ao topo da subida aonde encontrei uma pedra, atrás da qual dei uma parada para descansar. Dali para a frente foi mais fácil pois era descida, e eu desci com todo cuidado pois já havia levado tombos suficientes naquele dia. Antes de chegar a guarderia, ainda encontrei com um casal de ciclistas ingleses que estavam indo na direção contrária. Eles estavam se divertindo com o vento pelas costas e nem precisavam pedalar.

O guarda parque me recebeu muito bem e me informou que o vento havia atingido 100km por hora nas rajadas. Deixei a bike na guarderia e fui até as margens do Lago Grey, aonde havia vários icebergs encalhados na areia!

Esses icebergs haviam se desprendido do Glaciar Grey, a mais ou menos 15km de distância e foram arrastados pelo vento até encalhar na areia! Eu estava entrando em contato com um outro universo, aonde as dimensões eram enormes e o tamanho do Homem insignificante. O passar do tempo também não fazia muita diferença pois aqueles glaciares já estavam ali muito antes do homem ter dado os primeiros passos na Terra.

Já que estamos falando de glaciares e icebergs, convém explicar um pouco sobre como funciona a mecânica das águas nesta parte da Patagônia.

Um glaciar pode ser definido como um “rio” de neve e gelo. Ocorre muita precipitação de neve nas montanhas. Essa neve vai se acumulando e precisa escorrer para o lado mais baixo da montanha, exatamente como faz a água. A diferença e que a neve é solida e “escorre” muito lentamente, tão lentamente que acaba se transformando em uma espécie de gelo, devido as variações de temperatura que sofre ao longo do dia e a compactação ocorrida com a pressão do seu próprio peso. O gelo “escorre” ainda mais lentamente que a neve, rachando na medida em que se move, e cada glaciar tem a sua velocidade própria de movimento, que nunca passa de centímetros por hora.

Os glaciares ocupam áreas enormes, cobrindo vales inteiros entre montanhas. O gelo dos glaciares está sempre derretendo, e por cima e por baixo deles existem inúmeros rios, que acabam formando lagos. Portanto, aonde há um glaciar, há sempre um lago, e também um rio, por onde corre o excesso de água do lago. É por isso que existem glaciares, lagos e rios com o mesmo nome, todos relacionados entre si.

Uma grande particularidade dos glaciares na Patagônia é que muitos deles não se originam em simples montanhas e sim no Campo de Gelo Sul, que é a área de maior concentração de geleiras fora dos Pólos, com uma área de aproximadamente 14.000 quilômetros quadrados. O Campo de Gelo Sul é o que resta da última era glacial na América do Sul. Há também o Campo de Gelo Norte, que se localiza um pouco ao norte do Campo de Gelo Sul. É bem menor, mas ainda assim tem uma área de 4500 quilômetros quadrados.

Aquele estava sendo um dia cheio de emoções e ainda não tinha terminado. Fiquei um bom tempo nas margens do Lago Grey olhando os icebergs e depois voltei a guarderia para me preparar para a caminhada.

O guarda parque era muito simpático e acostumado a ter ciclistas deixando suas bikes com ele. Peguei minha mochila de caminhada, que estava dobrada dentro de um dos alforjes dianteiros e a montei, colocando nela a sua armação interna que eu carregava junto com a barraca. Depois de montada a mochila, separei as roupas, equipamentos e comida que ia necessitar e organizei tudo. Estava levando comida suficiente para 4 dias, e a mochila estava pesando por volta de 12kg.

Neste primeiro dia iria somente até o Refúgio Pingo a uns 40 minutos de distância e dormiria lá. A caminhada era curta mas foi gostosa, pela margem do Rio Pingo. Era outro estilo de viagem, que permitia um contato mais próximo à natureza ainda do que quando estava de bike.

O refúgio, que estava muito mal conservado, estava lotado com argentinos, chilenos e europeus. Havia várias barracas em volta do refúgio e montei a minha perto das outras, tendo um pouco de dificuldade com o vento, que já tinha enfraquecido, mas continuava bem forte. Preparei o jantar e voei para a cama. Finalmente o dia chegara ao fim. Ainda demorei a pegar no sono pois o vento sacudia a barraca que estalava e fazia barulhos estranhos.

No dia seguinte o vento continuava forte e ameaçava chover. Comecei a me preparar, e com a minha tradicional lentidão matinal estava pronto para sair às 11:30.

Iniciei a caminhada sozinho, a trilha seguia o Rio Pingo por um certo tempo, depois entrava em uma floresta de Lenga e começava a subir uma montanha. A trilha era bem bonita e dava para ver o topo de montanhas nevadas por entre as copas das árvores.

Depois de 2 horas de caminhada cheguei em uma cachoeira e parei para almoçar. A cachoeira não era muito bonita e por isso continuei em seguida, desta vez acompanhado por um grupo de chilenos que me alcançaram enquanto eu almoçava. Eram 5 amigos que estavam pela primeira vez no Parque, fazendo a caminhada até o Glaciar Pingo para depois percorrerem o circuito em volta do Maciço do Paine.

O terreno até o refúgio não era muito acidentado mas havia começado a chover e havia muita água na trilha. Isso atrapalhou os chilenos que não tinham sapatos a prova d’água e precisavam sempre buscar um caminho mais seco para prosseguir. Eu os deixei para trás e logo cheguei ao refúgio.

O refúgio Zapata estava ainda mais mal cuidado que o refúgio Pingo. As paredes eram totalmente pretas devido à fumaça que escapava da “salamandra”, que é um tipo de fogão à lenha. O local estava infestado de “ratones” e por isso toda a comida tinha que ser pendurada em arames no teto. Não havia ninguém dormindo lá mas preferi montar a minha barraca do lado de fora.

Algum tempo depois os chilenos chegaram e passamos o resto da tarde no refúgio secando as roupas que penduramos sobre a salamandra, que não parava de soltar fumaça e defumar a todos no local.

No dia seguinte criei coragem para tomar um banho de rio. Desde que saíra de Natales não tive nenhuma chance de tomar banho e nem teria tão cedo. O jeito foi encarar o rio gelado mesmo.

A água corre muito rápido e não dá para entrar mais fundo que a altura das coxas pois a água acaba te derrubando. Entrei até a altura dos joelhos e deitei rapidamente na água. Era super frio e saí rapidamente pois além do frio, quando se deita na água a correnteza começa a te arrastar imediatamente. Sai do rio, me ensaboei tremendo de frio e mergulhei de novo. Sorte que com a força da correnteza o sabão vai embora rapidamente. Me sequei no vento mesmo pois a minha toalha era bem pequena e não dava para me secar inteiro com ela. Engraçado como o vento funcionava bem como secador. Fora da água estava tão menos frio que dentro, que eu me sentia quase confortável!

Bom, até que não foi tão ruim. Acabou rápido, e eu já estava aquecido de novo, e limpo. Voltei ao refúgio, e junto com os chilenos, fui até o lago e glaciar Pingo.

Antes de chegar ao nosso destino, teríamos que atravessar a pé o rio Pingo pois a ponte que passava sobre ele havia sido destruída na semana anterior por uma enchente. Chegando ao rio procuramos por um local adequado para atravessar, e gastamos algo como duas horas para encontrá-lo pois todos os lugares pareciam fundos demais.

Finalmente escolhemos fazer a travessia em um lugar onde o rio era bem largo e parecia ser menos fundo. O nosso cobaia para a travessia foi o Maurício pois ele era o único que tinha trazido um par de sandálias para atravessar o rio com mais facilidade. Os outros teriam que atravessar descalços mesmo. A travessia não foi difícil, o rio estava na altura do início da coxa e usamos bastões de pau para ajudar a manter o equilíbro. O problema maior era a água fria. Chegava a doer de tanto frio, mas antes de chegar ao outro lado, os pés já estavam adormecidos e ninguém sentia mais frio. As pedras do fundo também atrapalhavam bastante e tínhamos que ir devagar para não machucar os pés. Chegando no outro lado paramos para secar os pés e conversar, e vimos dois turistas que vinham atrás de nós e estavam chegando no rio. Eram o Cris e a Jeanine!

Foi legal reencontrá-los, eles haviam me alcançado rápido e haviam tido os mesmos problemas com o super vento. Fomos todos juntos até o Lago Pingo, mas no caminho começou a chover de novo, e quando chegamos no lago não havia muita coisa para ver com o tempo encoberto.

Resolvemos voltar pois todos estavam molhados e cansados. Quando estávamos andando à uma meia hora, o tempo abriu de repente, confirmando a famosa Lei de Murphy.

Passamos mais uma tarde comendo, defumando as nossas roupas e a nós mesmos. Pelo menos estávamos em um grupo grande e o tempo passou rápido conversando.

No dia seguinte o tempo continuava ruim, choveu até o meio dia e só então comecei a caminhada para voltar a guarderia. Voltei sozinho pois o Cris e a Jeanine já tinham ido e os chilenos conseguiam ser mais enrolados que eu para se arrumar. Nos encontramos todos no refúgio Zapata pois era o último refúgio grátis naquela área do parque.

É possível ficar no Parque gastando pouquíssimo dinheiro, mas é necessário um pouco de planejamento pois não são todos os refúgios e campings que são grátis. Foi por isso que paramos todos no refúgio Zapata, para poder ter o dia seguinte inteiro para chegar ao próximo refúgio grátis.

No dia seguinte eu e os suíços saímos cedo pois pretendíamos pegar uma lancha que partia da guarderia Grey, atravessava o lago e levava até o glaciar Grey. O nosso plano era iniciar a caminhada lá. Optamos por não fazer o circuito completo pois não tínhamos tempo e ouvíramos dizer que a parte de trás do circuito não era tão interessante quanto a parte da frente. Entretanto, não pudemos fazer o planejado pois só era permitido comprar passagem de ida e volta para a lancha, e não tínhamos tanto dinheiro(30 dólares ida e volta).

Ficamos bem aborrecidos pois teríamos que dar uma volta enorme para só então chegar ao glaciar. Esse problema seria facilmente contornado se houvesse uma ponte para atravessar o Rio Grey. Por enquanto os turistas tem que pagar por travessias de barco até que a administração do Parque resolva melhorar um pouco a estrutura existente. Existe um projeto que envolve a construção de algumas pontes e campings, mas vai levar algum tempo até que seja posto em execução.

Mudamos os nossos planos e resolvemos pedalar até o refúgio Pudeto, que era grátis, e de lá poderíamos pegar uma lancha pagando passagem só de ida. Pedalei com os suíços até a administração do Parque e fiquei por lá procurando uma máquina de soldar para arrumar o meu bagageiro. Dei sorte pois havia uma com os militares, que estavam consertando as estradas do parque e tinham máquinas pesadas. Em cinco minutos já tinha arrumado tudo, e mais uma vez fiquei feliz por ter um bagageiro de ferro, que é fácil de soldar.

Reencontrei os suíços no refúgio e passamos a tarde comendo, que é o passatempo predileto do ciclista, e arrumando as mochilas para o dia seguinte. Deixamos as bikes em uma guarderia perto de Pudeto e no dia seguinte pegamos a lancha até o camping Pehoe.

A travessia leva uma hora e custa 12 dólares. O camping Pehoe tem uma localização estratégica e muitas pessoas passam a noite lá. Pode-se acampar por 4 dólares, com direito a banheiro com água fria para banho, ou dormir no refúgio, pagando 15 dólares, com direito a banheiro e água quente.

Optei por acampar ali mesmo. Cris e Jeanine foram embora em direção ao glaciar Grey, aonde iriam acampar. Eu acabei indo até o Grey também mas não levei a minha mochila, pois iria voltar para dormir em Pehoe. Foi uma boa idéia, de Pehoe até o Grey eram três horas de caminhada, com mais três horas para a volta.

Acabei levando menos tempo que isso pois sem a mochila ia mais rápido que os outros. O glaciar Grey é realmente impressionante. Um corredor de gelo imenso que desce do Campo de Gelo Sul e termina no lago Grey, aonde a parede de gelo, de 40m de altura, se rompe e enormes blocos de gelo caem na água aonde flutuam e vão derretendo aos poucos.

A trilha até o Glaciar estava cheia de gente. Encontrei dois grupos de brasileiros e também um enorme grupo de argentinos, que estavam fazendo a sua viagem de formatura no circuito.

Achei bem original, eram garotos e garotas com uma média de 15 anos. Estavam em um grupo de cem pessoas, acompanhados por 6 professores. Entretanto, durante a caminhada cada um seguia seu próprio ritmo e o grupo se dispersava, para se encontrar somente no final do dia, quando tinham que montar as barracas, cozinhar, lavar, etc.

As trilhas no Parque são muito bem marcadas e não há risco de se perder. O terreno também não é demasiadamente acidentado. Existem muitas subidas íngremes, mas não há nenhum trecho onde seja perigoso cair e se machucar. É pesado carregar uma mochila por várias horas, durante dias seguidos, mas a grande maioria do pessoal estava se divertindo muito. Havia aqueles que estavam sofrendo para carregar as mochilas, mas o grupo estava se movendo lentamente e havia tempo de sobra para fazer as caminhadas.

Cheguei de volta ao camping ao anoitecer e descobri que tinha vizinhos, os professores que acompanhavam o grupo de argentinos. Eles eram, como eu, professores de inglês. A escola era bilíngüe. Para minha surpresa eles estavam tranquilos, não havia problemas com o grupo, todos cozinhavam sua própria comida ou jantavam no refúgio. Eles me falaram que o maior problema que tinham era para acordar um ou dois dorminhocos pela manhã.


No dia seguinte caminhei até o Camping Italiano, a duas horas e meia de distância do Camping Pehoe. Lá reencontrei os suíços, e juntos caminhamos até o Campamento Britânico. Foram mais duas horas e meia de subida forte. Estávamos entrando no Vale Francês, que para mim foi o lugar mais interessante e bonito no parque.

Na saída do Camping Italiano podíamos ver a nossa esquerda o Cerro Paine Grande, com 3050 metros de altura. A montanha era coberta pelo Glaciar Francês, que se equilibrava precariamente nas encostas íngremes da montanha. De vez em quando podíamos ouvir um estrondo, como um trovão. Eram pedaços de gelo se rompendo, e caindo montanha abaixo, batendo nas pedras, formando uma cachoeira de gelo e neve. Era um espetáculo maravilhoso, mais uma demonstração de força e beleza da natureza .

À nossa direita podíamos ver os Cuernos del Paine, que como o nome indica, se assemelham à chifres. Os Cuernos são formados por blocos de granito marrom claro cobertos por uma camada de cascalho preto em forma de cone, daí a semelhança com chifres.

Na medida em que caminhávamos víamos outras montanhas. Ao lado dos Cuernos. Podíamos ver o Cerro Máscara, Hoja e também o Espada, todos eles com formas belas e estranhas.

Atravessamos uma bela floresta de Lenga e chegamos ao Campamento Britânico, em meio as árvores. Não há nenhuma infraestrutura nos campamentos, que são apenas áreas aonde acampou-se muito ao longo dos anos e por isso não há vegetação rasteira. Não há banheiro ou latas de lixo, e o próprio campista tem que levar o seu lixo de volta ou então queimá-lo. Para obter água não há problemas pois os campamentos se localizam todos às margens de rios de águas limpíssimas.

A maior parte dos turistas não acampa no Campamento Britânico. O lugar estava vazio, com apenas uma barraca que pertencia a escaladores que estavam em alguma montanha na área. Geralmente as pessoas acampam no Camping Italiano e sobem somente para passar meio dia na parte mais alta do vale, o que é um erro, pois não há tempo suficiente para se explorar o vale direito.

No dia seguinte eu, Cris e Jeanine caminhamos até o miradouro, 30 minutos ao norte do campamento. De lá podíamos ter uma visão mais ampla do vale. O Vale Francês é totalmente fechado no lado norte. Havíamos entrado nele pelo lado sul e seguido um rio entre os Cuernos e o Cerro Paine Grande. O lado norte do vale se fecha em uma espécie de círculo, e o miradouro se localiza mais ou menos no centro deste círculo. Estávamos totalmente cercados por montanhas, uma mais estranha e bonita que a outra. Ficamos parados ali por um bom tempo, apenas admirando o visual. De vez em quando cascatas de gelo despencavam pelas encostas do Cerro Paine Grande, rugindo como trovões.

Em direção noroeste a partir do miradouro, é possível subir por uma espécie de vale entre os Cerros Espada e Fortaleza. Não há trilha, mas havíamos conversado com outras pessoas e sabíamos que era possível subir por ali. A orientação era bastante simples, só havia um caminho a seguir, e se a visibilidade se mantivesse boa poderíamos encontrar nosso caminho para entrar e sair deste vale lateral sem problemas.

Jeanine não quis ir pois estava cansada da subida do dia anterior, fomos apenas eu e o Cris. O caminho a seguir era realmente bastante óbvio mas deixei o Cris ir na frente, afinal de contas além de suíço ele era instrutor de montanhismo, e sabia tudo sobre montanhas.

A subida se tornava cada vez mais íngreme. Estávamos caminhando sobre pedras, acima da altura máxima atingida pela vegetação. Havia pedras de todos os tamanhos, e caminhávamos sobre as maiores pois assim havia menos risco de que elas virassem e torcêssemos um pé.

É muito curioso como é fácil perder a noção de distância nas montanhas. Como elas são enormes, aparentam sempre estar logo ali. Nós continuávamos a caminhar e a distância parecia não diminuir. Depois de um certo tempo chegamos ao local que achávamos ser o fim do vale, mas descobrimos que não tínhamos percorrido nem a metade da distância. Paramos para descansar e comer um chocolate. Também colocamos roupas mais quentes pois o vento havia começado a soprar forte.

O céu ainda estava azul, mas não podíamos ter uma idéia real sobre como o tempo iria se comportar pois estávamos fechados no vale e não podíamos ver se havia nuvens se aproximando. Continuamos a nossa caminhada, agora já estávamos entre o Cerro Espada e o Fortaleza, a uma altitude de 1700 metros. Às vezes o chão estava coberto de neve, neve esta aonde eu tratei logo de pisar em cima, as minhas primeiras pegadas na neve na Patagônia!

O nosso objetivo era chegar ao fim deste vale pois havíamos visto no mapa que ele se interligava a outro vale, o Vale do Silêncio, e queríamos chegar neste ponto, aonde há um grande abismo, para dar uma olhada.

Havia começado a nevar, uma neve bem fininha, como se fosse uma garoa, mas estávamos quase chegando e não desanimamos. Acabamos não podendo chegar ao local onde os dois vales se encontram, pois havia um glaciar cobrindo os últimos 500 metros do caminho.

Os glaciares são como um campo de gelo e neve que se movimenta, muito lentamente, mas se movimenta. Ao se movimentar o gelo racha,e por isso a superfície dos glaciares é toda coberta de fendas, que às vezes são bem profundas. Cris me explicou que seria muito perigoso continuar pois muitas fendas estavam cobertas pela neve, e podíamos cair numa delas e não teríamos como sair, pois não tínhamos nenhum equipamento para isso.

Que ironia, ter chegado até ali e ter que voltar. O glaciar era bonito, com a coloração tipicamente azulada deste tipo de gelo, e toda a paisagem tinha um aspecto meio lúgubre, pois com a neve a visibilidade havia reduzido bastante, e não enxergávamos além de 700 metros.

Ficamos alguns minutos admirando o cenário mas logo tivemos que retornar pois as nossas roupas não eram eficientes contra a água, e estava nevando mais forte, com bastante vento. Felizmente, apesar da visibilidade estar baixa, não tivemos problemas para encontrar o caminho de volta.

A descida foi bem mais rápida que a subida mas cansou bastante. Tínhamos que descer rápido pois estávamos com frio, mas também tínhamos que tomar cuidado para não escorregar ou torcer um pé.

De volta ao acampamento, conseguimos acender uma fogueira para nos aquecer, e almoçamos ao redor dela.

Havíamos combinado de descer até Pehoe à tarde e logo após o almoço o Cris e a Jeanine desceram, mas eu fiquei descansando e esperando o tempo melhorar um pouco pois continuava a garoar.

Acabei tendo que descer com garoa mesmo pois estava ficando tarde e eu tinha pela frente aproximadamente 4 horas de caminhada até Pehoe. Isso somado às quatro horas que caminhei com o Cris de manhã, totalizariam 8 horas. Acabei me arrependendo depois por não ter ficado mais um dia explorando outras partes do vale.

A descida até Pehoe foi sem incidentes. Tive a oportunidade de experimentar caminhar com a minha capa amarela, que provou ser excessivamente quente. Cheguei em Pehoe ao anoitecer, estava chovendo forte e ventando muito. Procurei em vão pelos suíços. Queria dormir na barraca deles pois estava complicado montar a barraca sem ficar totalmente ensopado. Não os encontrei e estava totalmente escuro.

Encontrei com o rapaz que tomava conta do camping e lhe contei a minha história. Ele me deixou dormir de graça em uma das barracas que eles tinham para alugar. Pude me jogar dentro do meu saco de dormir e desmaiar embalado pelo barulho da chuva.

No dia seguinte procurei os suíços de manhã mas não os encontrei, e acabei deixando o camping às 11:30, para caminhar 5 horas até a administração do Parque. Havia bastante vento mas eu o tinha a favor, o que tornou até divertida esta caminhada que passa por uma parte do parque que não é muito bonita. A única coisa que me chamou a atenção nesta caminhada foram umas nuvens que haviam “encalhado” sobre as Torres. Havia uma nuvem gigante em forma de cegonha, com longas asas e pescoço. Apesar do vento que vinha das Torres em minha direção, a nuvem permanecia parada no mesmo lugar. Fiquei observando-a por um bom tempo até que finalmente ela começou a girar sobre si mesma e se desintegrar. Aquela não era a primeira vez que eu via nuvens estranhas no parque. O que ocorre é que as nuvens se chocam contra o maciço das Torres, que atua como barreira para elas. As nuvens são pressionadas a subir pelo vento e com isso assumem formas estranhíssimas e podem ficar pairando sobre as montanhas por um longo tempo.

Chegando na administração peguei uma carona até o Refúgio Pudeto, aonde reencontrei os suíços. Todos os dias eu me separava e reunia com eles, isso porque eles eram sempre mais rápidos para se organizar e gostavam de começar o dia cedo. Eu era mais despreocupado e lento, e costumava deixar o acampamento para pedalar ou caminhar sempre por volta das 11:00 da manhã. Como eu e eles estávamos fazendo o mesmo trajeto, nos reencontrávamos fatalmente, sempre nos surpreendendo como isso ocorria tão rápido e facilmente.

Recuperamos as nossas bikes que haviam ficado com o guarda parque de Pudeto e nos preparamos para sair na manhã seguinte com destino à Hosteria las Torres, aonde iniciaríamos a nossa última caminhada no parque, passando pelos campamentos chileno, das torres e chegando até o Campamento Japonês, de onde pode se continuar até o Vale do Silêncio.

Para variar um pouco, os suíços me deixaram para trás de manhã enquanto eu conversava com as outras pessoas que estavam no refúgio e arrumava a bike. O vento estava muito forte e a favor, foi uma delícia pedalar até a hosteria, nas subidas parecia que havia alguém empurrando a bike.

Chegando na hosteria, encontrei o Cris e a Jeanine começando a caminhar. Eu ainda almocei, descansei e arrumei a mochila antes de sair.

A trilha subia por uma encosta bastante íngreme, e o vento estava muito forte, dificultando bastante a caminhada. Depois de uma hora a subida diminuiu de intensidade e o vento atrapalhava menos. Em uma hora e vinte minutos cheguei ao Campamento Chileno, e com mais quarenta e cinco minutos cheguei ao campamento de las Torres, aonde encontrei os suíços. Eles já haviam montado a barraca e estavam cozinhando uma sopinha para espantar o frio. Jeanine já havia se escondido em seu saco de dormir e Cris estava fora, cuidando da sopa, tremendo de frio, pois eles não haviam trazido, naquela caminhada, roupas que os aquecessem o suficiente quando estavam parados. Eles planejavam ficar dentro dos sacos de dormir se ficasse muito frio. Esse problema só ocorreria quando estivessem parados pois ao caminhar o corpo gera calor suficiente para que a pessoa se aqueça com roupas mais leves.

Os suíços tinham mochilas bem pequenas e não podiam carregar muito equipamento. Por isso eles sempre reduziam o equipamento deles ao mínimo quando fazíamos caminhadas, e me criticavam por carregar coisas “desnecessárias”. Eu tinha uma blusa de lã extra e por isso não passei frio neste dia.

Depois de descansar um pouco, deixei Cris e Jeanine se aquecendo na barraca deles. Eles tinham esta vantagem, podiam juntar seus sacos de dormir e aquecer um ao outro. Continuei até o Campamento Japonês, pois estava ansioso por conhecer o Vale do Silêncio. Eu adorava aqueles nomes dramáticos e sugestivos, sempre geravam uma expectativa enorme e isso aumentava a emoção de chegar a esses lugares.

O Campamento Japonês não é muito frequentado, e serve de acampamento base para expedições de Andinistas que estejam tentando escalar as Torres. Havia algo como 15 barracas no acampamento, todas vazias pois o pessoal estava acampado o mais próximo possível das montanhas.

Tinha a impressão de estar em um acampamento fantasma, ou que algo houvesse acontecido com as pessoas que deviam estar ali. Havia pegadas em volta das barracas, roupas secando em varais improvisados, louça sem lavar na beira do rio, mas ninguém por perto. Várias barracas haviam recebido extensões improvisadas com pedaços de lona ou tetos de barraca velhos, e o acampamento todo tinha o aspecto de uma espécie de campo de refugiados. Me resignei a passar uma noite sem conversar com ninguém e logo me recolhi para dormir.

Na manhã seguinte entrei no famoso Vale do Silêncio, que como esperava, não tinha nada de silencioso. No momento em que acabei de contornar uma montanha que marcava a entrada do Vale, dei de cara com um vento fortíssimo, que soprava no sentido contrário ao que eu tinha que caminhar. Continuei subindo, pelo menos a subida não era muito íngreme. O visual não era muito especial, o Vale Francês era mais bonito. O especial acabou ficando por conta do tempo mesmo. O vento não parava de aumentar e logo começou a cair aquela “neve garoa” de novo, me obrigando a parar atrás de uma pedra para colocar a minha jaqueta.

Logo em seguida encontrei com um inglês que estava descendo ao Campamento Japonês para passar um dia mais confortável, pois não haveria escalada com um tempo péssimo como aquele. Ele me explicou aonde era o acampamento dos brasileiros na montanha.

Eu já sabia que havia escaladores brasileiros lá em cima, e inclusive estava levando um pacote de sopa de presente para eles. Eu não os conhecia mas ia visitá-los de qualquer maneira.

Havia várias expedições acampadas no Vale, todas instaladas em barracas na neve, bastante expostas ao vento. Elas pareciam incrivelmente pequenas para suportar aquele vento. Eu tinha que caminhar abaixado para poder manter o equilíbrio e estava usando óculos escuros para poder manter os olhos abertos, pois já estava nevando mais pesado, e o vento estava extremamente forte.

Finalmente cheguei ao acampamento dos brasileiros, que aliás podia ser chamado de “palácio” em comparação com os outros acampamentos. Eles estavam em uma espécie de caverna que foi aproveitada como abrigo. A caverna era formada por uma enorme pedra que estava apoiada sobre uma pedra menor, deixando um grande espaço sob a pedra grande. Havia vãos entre as pedras mas eles tinham sido tampados com pedras menores, que eram cobertas ainda com pedaços de uma lona plástica, que fazia as vezes de porta também .

O espaço interno era bastante razoável, algo como 4 metros de comprimento por 3 de largura, e dava até para ficar em pé no meio. Realmente um ótimo abrigo, muito melhor que qualquer barraca. A caverna havia sido montada por alguma expedição anterior mas todos que acampavam nela contribuíam para a sua manutenção. Os brasileiros estavam acampando nela pois foram os primeiros a chegar no local naquela temporada.

Sérgio e Luís ficaram surpresos em me ver, afinal não é todo dia que se recebe a visita de um brasileiro desconhecido chegando no meio de uma tempestade.

Sérgio era do Rio de Janeiro e Luís de Curitiba, e eles estavam tentando escalar uma das Torres do Paine. Eles estavam acampados na caverna há 24 dias mas ainda não haviam tido uma boa oportunidade para tentar escalar a montanha. O tempo esteve péssimo durante o mês inteiro e somente uma expedição havia conseguido atingir o cume de uma das Torres.

Sérgio e Luís haviam conseguido chegar somente à base da montanha e deixado alguns equipamentos esperando por eles para quando fossem tentar a escalada. Eles me contaram que o problema maior para se escalar na Patagônia é a impetuosidade e imprevisibilidade do clima.

A pedra em si não é extremamente difícil de se escalar, mas o clima frequentemente muda radicalmente e de uma maneira muito rápida, de forma que pode-se começar a escalar com o clima em condições ideais e no meio da escalada ser apanhado por ventos fortíssimos que muitas vezes obrigam o escalador a ficar parado na montanha, sem poder subir ou descer. Depois de algumas horas nestas condições a pessoa pode começar a congelar e se as condições não permitirem a descida a pessoa pode acabar morrendo congelada sem poder fazer nada para se salvar.

Parecia ser uma morte horrível, e eles me contaram que todos os anos acontecem acidentes naquelas montanhas. Naquele verão o único acidente havia ocorrido com um suíço que perdeu o dedinho de uma das mãos por congelamento.

Ficamos conversando por um bom tempo sobre escaladas e sobre a minha viagem também , e tomamos uma sopa para nos aquecer. Incrível como estava frio. Durante a caminhada eu não havia sentido nada de frio mas dentro da caverna precisei colocar todas as roupas que tinha comigo e mesmo assim não foi suficiente. Acabei resolvendo voltar para a minha barraca aonde estaria mais quente.

Deixei Sérgio e Luís na caverna, eles estavam planejando esperar mais alguns dias por um tempo melhor e se não houvesse melhora iriam escalar algo mais fácil no Vale Francês, deixando as Torres para uma outra oportunidade.

Passei mais uma noite no Campamento Japonês, desta vez acompanhado por dois escaladores canadenses. Esta foi a primeira vez que acampei duas vezes no mesmo local.

No dia seguinte desci até a Hosteria las Torres, aonde havia um camping, e tomei um delicioso banho quente. Faziam oito dias desde que eu havia tomado aquele banho gelado no rio. Eu não tive coragem para repetir a dose, por isso fiquei tanto tempo sem banho, estabelecendo um recorde que ainda ia ser quebrado durante a viagem!

Recuperei a minha bike e imediatamente me dirigi até a saída do parque. Estava cansado das caminhadas e louco para pedalar de novo. O roteiro dali para a frente prometia muitas emoções pois eu ia pegar uma trilha de cavalos e seguir por ela até a Argentina, entrando no pais por um caminho utilizado somente por pessoas que conheciam o local, ou então trekkers e ciclistas.

Essa era outra das descobertas do irmão do Cris, que havia feito aquele roteiro alguns anos antes. Era mais um privilégio de ciclistas, poder seguir um caminho por onde não passa praticamente ninguém. A vantagem era de novo economizar quilômetros, desta vez eram 150 quilômetros a menos do que a estrada normal, e ainda por cima passando por uma área muito pouco visitada, uma tentação irresistível.

Apesar da expectativa e de estar feliz por estar na estrada de novo, me senti um pouco deprimido nesta tarde. Eu amaldiçoava a viagem e a mim mesmo nas subidas, estava sem paciência para fazer força. Mas depois das subidas sempre vinham as descidas e o meu bom humor voltava na hora.

Continuei desta maneira até ouvir um ruído leve, mas desagradável. Era o ruído de um raio da roda arrebentando. Parei para ver de que lado o raio havia quebrado e, lei de Murphy em ação, era do lado direito, o lado para o qual eu necessitava aquele maldito Hyper-cracker que eu não tinha.

Não pude fazer nada a não ser me revoltar e continuar a pedalar até a Laguna Azul, rezando para conseguir improvisar alguma maneira de consertar a roda, pois senão teria que voltar e seguir pela estrada normal.

A Laguna Azul me surpreendeu com sua beleza, e havia um refúgio grátis bem na margem do lago, muito bonito e tranquilo. Antes de ir ao refúgio parei na casa do guarda parque para perguntar se ele tinha ferramentas. Eu ia precisar de uma morsa para desmontar a roda traseira.

O guarda parque não tinha nenhum tipo de ferramenta, mas me disse que havia um casal de ciclistas dormindo no refúgio, e que talvez eles pudessem me ajudar.

Não acreditei quando os vi, eram o Cris e a Jeanine! Foi muito legal revê-los pois eu achava que havíamos nos separado definitivamente.

Eles haviam pedalado até a Laguna Azul mas estavam indecisos em relação a continuar pela trilha de cavalos, pois não sabíamos direito como seria o caminho até a Argentina. Segundo o irmão do Cris era “fácil”, o único problema seria atravessar um rio sem ponte carregando a bike. Haveria também um trecho sem trilha alguma, mas neste trecho não havia mato, era tudo pasto, fácil para pedalar ou empurrar a bike.

Jeanine me disse que conhecia bem o irmão do Cris, e o que era “fácil” para ele muitas vezes era impraticável para outras pessoas, e por isso ela preferia seguir pela estrada normal. Cris também queria prosseguir pela trilha alternativa, mas acabou cedendo e resolveu seguir com Jeanine, de maneira que eu iria partir bem cedo na manhã seguinte, sozinho.

Já era noite, e conversávamos tudo isso enquanto eu arrumava os raios da roda. Eu já estava craque em trocar raios e tive uma grande sorte de encontrar o Cris com o seu Hyper-cracker no refúgio. Os raios foram o único problema que tive com a bike na viagem. Isso foi devido à alguma pancada sofrida pela roda no transporte, que fez com que o aro entortasse ligeiramente, o que por sua vez fazia com que alguns raios ficassem mais tencionados que outros, e assim propensos a se romperem.