segunda-feira, 15 de outubro de 2007

10 - Los Glaciares - Fitz Roy



A estrada até Chalten é uma estrada secundária e não recebe muita manutenção. Resolvemos fazer esse trecho de carona pois o vento estava muito forte.

O Cris e a Jeanine partiram cedo pela manhã com o ônibus que leva turistas até o Parque, deixando as bikes no Hotel para virem buscá-las depois. Eu preferi esperar mais tempo pois queria pegar uma carona com uma caminhonete para poder levar a bike comigo. Combinamos de nos encontrar no parque mas não combinamos nenhum lugar especifico, já que sempre nos encontrávamos automaticamente. Nos despedimos com um casual aceno de mão já que eu estava longe plantando mais árvores. Mal sabíamos que não iríamos mais nos encontrar.

Duas horas depois que os suíços foram embora, apareceu uma caminhonete que aceitou levar a mim e a bike. Eles não iam até Chalten e sim até a ultima Estância antes da vila, que segundo o motorista ficava a apenas dois quilômetros de distância da mesma.

A viagem correu sem problemas, mas as condições da estrada eram bastante ruins e teria sido penoso pedalar por ali. Logo chegamos na última estância onde o motorista me deixou, mas Chalten ainda estava bem distante, com certeza a mais de dois quilômetros.

Demorei mais de duas horas para chegar. Foram dezesseis quilômetros, fazendo uma média de apenas 6,5 km/hora, pois o vento estava soprando com muita força.

Chalten funciona como base para se explorar a parte norte do Parque Nacional Los Glaciares, e ali pode se encontrar Hospedajes, hotéis mais luxuosos e campings também. Para acampar não é necessário pagar nada, mas também não há infra-estrutura nenhuma. Pega-se água para cozinhar no rio e o único banheiro disponível é o da guarderia do parque, que só abre durante o dia. Há ainda mini mercados, restaurantes, posto de gasolina e correio.

A atração principal desta parte do Parque são as montanhas, e a mais famosa de todas é o Cerro Fitz Roy, uma enorme coluna de diorito, de cor alaranjada, que se eleva a 3441 metros de altura. Igualmente famosos e impressionantes são os Cerros Torre e Torre Egger que se erguem como agulhas apontando para o céu.

Cheguei ao entardecer no parque e armei minha barraca na área livre de campismo. No dia seguinte fui e voltei até a Laguna Torre para ver mais de perto o Cerro Torre. Foram seis horas de caminhada, sem mochila, mas não dei sorte e o Cerro Torre estava parcialmente encoberto por nuvens. Mesmo assim valeu a pena pois a área ao redor da montanha é muito bonita.

Retornando à Chalten conheci um grupo de turistas argentinos muito simpáticos e comprei uma garrafa de cinco litros de vinho para tomarmos juntos. Passamos uma noite muito agradável conversando e bebendo à beira de uma fogueira.

No dia seguinte desmontamos as barracas. Os argentinos estavam indo embora do parque de carona, e eu estava partindo para ir até a base do Fitz Roy. Deixei a bike na guarderia junto com as coisas que não iria usar na caminhada. Havia sobrado bastante vinho e enchi a minha garrafa de água com ele para levar na caminhada, seguindo o conselho dos argentinos.

Nos despedimos, para provavelmente nunca tornarmos a nos encontrar. Viajar é assim, ganha-se a companhia de pessoas muito agradáveis e especiais, e depois de um breve tempo, perde-se a companhia delas pois os caminhos se separam. Novas pessoas vão surgir, com certeza. Havia sido assim com o Cris e a Jeanine, e agora era com os argentinos.

Deixei o acampamento para trás, caminhando em direção ao Fitz Roy, que mesmo à uma distância de 13 quilômetros era bastante imponente. Estava quase chegando ao acampamento Rio Blanco aonde passaria a noite, e parei para bater uma foto com o Fitz Roy ao fundo pois o sol estava se escondendo atrás dele. Era uma visão encantadora, o Fitz Roy sem a luz do sol aparentava ser cinza ao invés de bege. Os raios de sol pareciam querer atravessá-lo, mas não conseguiam, tendo que se contentar em contorná-lo por cima. Podia ver claramente os raios emergindo de um ponto comum além da montanha, abaixo da minha linha do horizonte, como se alguém estivesse atrás do Fitz Roy acendendo vários holofotes em direção ao céu.

Apareceram dois ingleses que estavam voltando para Chalten, e eles me pediram para que tirasse uma foto deles com o pôr do sol atrás. Eles estavam voltando de uma escalada bem sucedida em uma das montanhas menores do maciço do Fitz Roy, e mal podiam esperar para chegar em Chalten para comemorar. Eu lhes disse que nem precisavam esperar tanto pois eu estava com a minha infalível garrafa de vinho bem ali.

Brindamos ali mesmo, à saúde da escalada deles, à saúde do pôr do sol e à saúde da aventura. Foi comovente mas rápido pois tínhamos que chegar aos nossos destinos antes que escurecesse totalmente, e assim nos despedimos.

Logo cheguei ao Campamento Rio Blanco, que oferece uma vista maravilhosa da montanha, e montei a minha barraca, de costas para o oeste, caso o vento começasse a soprar. Havia este detalhe, o vento não estava soprando, e isso realçava ainda mais a beleza do local. Parece até que é possível ver mais quando há silêncio, fica se mais alerta, como se algo tivesse sido esquecido, ou como se algo importante fosse acontecer a qualquer momento.

Não havia muito tempo para divagações e tratei de juntar lenha para uma providencial fogueirinha. Esta tarde dispensei o meu fogareiro e cozinhei na fogueira mesmo, observando o dia acabar de se transformar em noite.

No dia seguinte acordei cedinho para ter uma das visões mais bonitas da viagem. O sol estava nascendo, logicamente no leste, iluminando bem de frente o maciço do Fitz Roy, com a luz mais delicada que pode oferecer. A montanha tinha um tom entre o cor de rosa e o amarelo, difícil de descrever. O céu estava azul clarinho, sem nenhuma nuvem, e o silêncio era o mesmo da tarde anterior.

Havia poucas pessoas acordadas no campamento, elas haviam acordado para ver o nascer do sol e mal ousavam cochichar entre elas para não quebrar a magia do momento. Não havia mesmo o que falar, podíamos apenas olhar, e respirar aquele ar fresco puríssimo. Não valia a pena nem mesmo pensar, tentar definir ou entender a pureza e perfeição da natureza , mais uma vez surpreendendo com outro de seus shows.

Para comemorar tanta poesia fiz uma panelada de musli, afinal o dia seria longo, com muita caminhada para chegar o mais perto possível do grande Fitz Roy, que foi batizado em homenagem ao capitão Fitz Roy, do navio Beagle. Fitz Roy e o naturalista Charles Darwin percorreram em 1834 o Rio Santa Cruz até uma distância bem próxima da cordilheira, tendo sido muito provavelmente os primeiros europeus a avistar a montanha.

Do Campamento Rio Blanco há uma trilha que leva até a Laguna de Los Tres, a 1160 metros de altitude, praticamente aos pés da montanha. A trilha é bastante clara e fácil de seguir, mas a subida é bastante puxada pois há uma diferença de altitude de 450 metros. O Fitz Roy não é visível durante a maior parte da caminhada pois fica encoberto pelo morro que é bastante íngreme. Foi um grande prazer acabar de vencer a subida e dar de cara com a laguna e o Fitz Roy ao fundo. Incrível como basta subir um morro a mais para ter uma visão mais bonita que a anterior. A laguna aumentava ainda mais a beleza do local.

O Fitz Roy estava perto, mas eu queria chegar mais perto ainda, e comecei a analisar os possíveis caminhos para me aproximar mais. Diretamente a minha frente estava a laguna, e parecia ser possível andar pela margem esquerda dela até alcançar um glaciar que descia diretamente da montanha. Ali eu teria que parar pois não tinha equipamento para caminhar no gelo, e nem seria aconselhável fazê-lo sozinho.

A minha direita havia uma montanha, o Cerro Madsen, com aproximadamente 1850 metros. Podia visualizar uma rota até o topo da montanha ali de onde eu estava, e o caminho não parecia ser demasiado íngreme ou passar por partes perigosas. Optei por subí-lo pois lá de cima com certeza poderia ter um campo de visão bem maior que das margens da lagoa.

Iniciei a subir em direção a encosta que planejara seguir até o topo da montanha e lá acabei encontrando uma espécie de trilha que levava para cima, o que era um bom sinal e indicava que eu estava no caminho certo e que era realmente possível subir por ali. A subida era bem puxada e longa, mas eu não tinha pressa e parava o tempo todo para observar o panorama. O meu campo de visão aumentava a medida que eu subia. O Campamento Rio Blanco já estava difícil de localizar mas ainda podia ver a minha barraca minúscula lá embaixo. Podia ver também uma nova lagoa ao sul da Laguna de Los Três, era a Laguna Sucia.

Continuei a subir caminhando tranquilamente sobre pequenos fragmentos de pedra que formavam um piso bastante firme, até encontrar uma parede de pedra praticamente vertical que atravessava o meu caminho. Teria que escalá-la se quisesse prosseguir pois não havia como contorná-la. Felizmente a pedra era toda rachada e não faltavam lugares para apoiar os pés e as mãos. A parede tinha mais ou menos cinco metros de altura e de onde eu estava podia ver que seria possível continuar a caminhar por cima dela.

Escalei com todo o cuidado pois não poderia sofrer nenhum tipo de acidente ali em cima. Não havia ninguém para me resgatar e naquela altitude sem barraca ou saco de dormir eu poderia morrer de frio caso não pudesse me mexer. Escalei devagar testando antes de colocar o meu peso nos apoios para não apoiar em nenhuma pedra excessivamente solta. Era incrível como a pedra estava totalmente fraturada. Era daqui de cima que saiam as pedrinhas sobre as quais eu caminhava lá embaixo.

Logo cheguei ao topo da parede e pude continuar sem problemas, apenas caminhando mais lentamente pois o topo dela era bem irregular. Acabei tendo que descer do outro lado da parede para poder continuar na direção certa. Passei então a caminhar sobre a neve, subindo uma rampa bastante longa e íngreme. Ali também havia perigo pois se por acaso houvesse neve fresca caída em cima de neve congelada, eu poderia facilmente escorregar ao apoiar o meu peso pois eu estava com botas normais sem “grampons” para aderência no gelo. A solução foi avançar bem devagar somente apoiando os pés aonde eu podia sentir firmeza. Já podia ver o topo da minha grande montanha e logo estaria lá.

Antes de chegar no topo tive outra visão maravilhosa. Pude ver, praticamente abaixo de mim, o que havia atrás do Cerro Madsen. Era o Glaciar de Piedras Blancas, simplesmente fantástico, visto assim do alto. Podia ver todas as fendas no gelo. Podia ver também como há áreas onde o gelo se move mais devagar e por isso sofre menos fraturas. O mais impressionante era o lado leste do Glaciar que praticamente desabava em direção ao lago formado por ele mais embaixo. As fendas nesta parte eram realmente enormes.

O topo do Cerro Madsen é formado por uma espécie de pilar de pedra de uns três metros de altura, também fácil de escalar. Fiquei ali sentado, maravilhado com o visual, embelezado desta vez não só pelo silêncio, mas também pela adrenalina que circulava no meu sangue. Aliás àquela altura o meu sangue não se contentava em simplesmente “circular” nas minhas veias, ele estava apostando corrida, quebrando o recorde de velocidade do circuito.

O Fitz Roy continuava bem mais alto do que eu, mas eu o estava vendo de um novo ângulo. Havia realmente valido a pena subir até ali para vê-lo melhor. Todo o maciço do Fitz Roy, composto por várias “agulhas”, montanhas menores mas não menos espetaculares, estava mais bonito lá de cima. Eu me sentia menos diminuído olhando para as montanhas estando eu mesmo no topo de uma delas.

A descida até o acampamento ocorreu sem incidentes, tomei o cuidado de descer bem devagar nos momentos críticos para não ter nenhum acidente, e logo estava caminhando de novo na trilha normal.

De volta a Rio Blanco encontrei com um casal inglês que havia conhecido na subida à Laguna de Los Três e jantamos juntos à beira de uma nova fogueira. Bebemos o meu vinho e comemos um delicioso macarrão. Tivemos até chocolate de sobremesa, e a companhia de um senhor que estava viajando sozinho e era policial em Londres.

Na manhã seguinte tomamos café juntos perto da minha barraca pois durante a noite o tempo havia mudado completamente e estava ventando com muita força e garoando. A garoa parou logo mas o vento continuou a soprar forte o dia inteiro.

Por volta do meio dia comecei a caminhar junto com o casal inglês, Warren e Martha, em direção ao Glaciar de Piedras Blancas, aquele que eu havia visto no dia anterior do topo do Cerro Madsen. Chegamos lá depois de uma hora e meia de caminhada sendo empurrados e sacudidos pelo vento. Almoçamos em meio às enormes “piedras blancas” que existem por ali e em seguida nos separamos.

Os ingleses voltaram ao acampamento enquanto eu prossegui até a Piedra del Fraile. A trilha até lá segue o curso do Rio Blanco para depois virar a esquerda e seguir o leito do Rio Elétrico, que passa ao lado da Piedra del Fraile. Existem várias opções de caminho para sair do Rio Blanco e seguir o Rio Elétrico, e eu tive o azar de escolher uma trilha que simplesmente terminou em lugar nenhum, no meio de uma floresta de Lenga. Felizmente a direção a seguir era bastante óbvia, eu deveria caminhar entre a montanha, que deveria estar sempre a minha esquerda, e o rio, que deveria estar em algum lugar à minha direita. Eu não podia ver o rio por causa do mato que obstruía a visão, mas sabia que ele estava por ali. Mas eu podia ver a montanha e fui caminhando aos pés dela até que acabei por encontrar a trilha de novo e a partir daí segui sem novidades até chegar aonde queria.

Piedra del Fraile é um refúgio e camping de propriedade privada e é necessário pagar em torno de cinco dólares para acampar ali. Mas o local oferece uma comodidade valiosíssima, água quente para tomar banho! A água é armazenada em um tambor de metal que é aquecido com fogo à lenha, bastante engenhoso e deliciosamente confortável. Além disto, em Piedra del Fraile às vezes é possível comprar pão e deliciosos bolos feitos pelo proprietário, tudo depende do quão cheio estiver o camping.

Tomei um delicioso banho, mas não pude demorar muito pois havia várias pessoas na fila, o camping estava lotado de argentinos que estavam se preparando para uma caminhada no Campo de Gelo Sul.

Próximo à Piedra del Fraile existe uma passagem que leva ao Gelo, chamada Passo Marconi. O Passo Marconi é a entrada mais utilizada por grupos que vão caminhar no gelo. Entra se por ali e caminha se até o Passo del Viento aonde é possível sair do gelo e voltar até Chalten. Uma aventura como estas leva entre uma semana e duas, o tempo de duração depende das condições climáticas no Campo de Gelo, e das condições físicas e velocidade do grupo.

O clima no Campo de Gelo pode ser perfeito ou péssimo, com tempestades de neve acompanhadas por ventos fortíssimos e que chegam a durar até uma semana, situação na qual a única coisa a fazer e ficar dentro da barraca e esperar uma melhora no tempo. Realmente não é uma viagem para qualquer um, e olhando para aquelas pessoas me perguntava se elas estariam realmente preparadas para o pior, caso ele viesse a acontecer. O grupo tinha quinze pessoas e dois guias. Várias pessoas me pareciam estar fora de forma para uma atividade física extenuante e prolongada. Além disto havia com eles uma equipe de televisão com três repórteres, que teriam que carregar peso extra, como câmeras de televisão, baterias extras, cabos ,etc.

Não cabia a mim julgá-los, e pensei que o guia não seria irresponsável a ponto de levar pessoas inexperientes ou despreparadas a uma situação potencialmente perigosa.

Na manhã seguinte, bem cedo, o grupo partiu, e eu nem os vi sair. Queria ter visto como um grupo tão grande se locomovia. De qualquer forma acabei levantando cedo também pois queria explorar um pouco os arredores.

Escolhi subir ao miradouro do Fitz Roy e ter uma outra visão da montanha, agora da sua face norte. Para chegar ao miradouro deveria seguir uma trilha que parte da Piedra del Fraile e sobe por uma encosta muito íngreme até uma espécie de vale situado a mais ou menos 1500 metros de altitude, ou seja 1000 metros acima da Piedra del Fraile. O miradouro era ali e segundo o dono do camping seria o fim da trilha para pessoas sem equipamento para caminhadas no gelo.

A subida era realmente cansativa, mas o segredo para não sofrer demais nessas situações é o mesmo, subir devagar, parando para descansar e apreciar o visual.

Depois de uma hora e meia, mais ou menos, cheguei ao miradouro. Era realmente muito bonito, podia ver o Fitz Roy quase até o topo, que estava encoberto por nuvens. Estava ventando bastante e o céu estava escurecendo progressivamente. Também podia ver ali de cima o caminho que levava até o Passo Marconi, um glaciar longo e de inclinação suave.

Diretamente à minha frente, entre eu e o Fitz Roy, havia um glaciar, que representava o fim da caminhada para mim. Se pudesse atravessá-lo, poderia atingir o Passo del Quadrado, de onde poderia avistar o Cerro Torre e toda a cadeia de montanhas a oeste do Fitz Roy. Mas isso estava fora de cogitação pois a subida até o Passo era íngreme demais e havia varias fendas encobertas por neve no caminho.

Entretanto, havia um outro caminho que parecia ser praticável sem grandes problemas. Ele levava até o Passo Guillaumet, a aproximadamente 2200 metros de altitude. Ali de longe a subida não parecia ser impraticável e o mais importante é que ela não estava coberta de neve. O único problema é que eu teria que caminhar sobre um glaciar por uns duzentos metros. Mesmo assim o glaciar aparentava não ter fendas naquele trecho e isso me provocou ainda mais.

Resolvi prosseguir, e quase no início do glaciar encontrei um homem olhando pensativo em direção ao Passo Guillaumet. Puxei conversa com ele, era um Italiano, Maurizio, e me contou que estava no fim da sua viagem. Ele era espeleólogo glacial, ou seja, explorador de cavernas no gelo, e havia participado de uma expedição em busca de cavernas no Campo de Gelo Sul.

Obviamente ele sabia tudo sobre caminhadas no gelo, e eu lhe perguntei se ele achava ser possível caminhar sobre aquele glaciar até o Passo Guillaumet. Ele me disse que o gelo aparentava estar sem fendas e ele também estava pensando em tentar chegar ao Passo. Prosseguimos juntos através do gelo, um na frente do outro para no caso de um cair em alguma fenda o outro poder ajudar.

Atravessamos o gelo sem incidentes e começamos a caminhar pelas pedras. Logo paramos para discutir que rota seguiríamos até o Passo. Acabamos mudando o nosso plano pois um pouco à direita do Passo Gullaumet parecia haver um caminho escalável que nos possibilitaria ver o Cerro Torre e toda a cadeia de montanhas a oeste do Fitz Roy, exatamente a mesma vista que teríamos se subíssemos o Passo del Quadrado. O caminho aparentava ser um pouco difícil, mas resolvemos tentá-lo assim mesmo pois a vista de lá prometia ser muito mais interessante que do Passo Guillaumet.

O tempo estava piorando rapidamente e nos apressamos para chegar no topo antes que ele piorasse de vez. No meio da subida começou a chover, mas não desanimamos. Logo chegamos em um lugar a partir do qual era impossível continuar a caminhar.

Prosseguimos escalando, usando as duas mãos para nos apoiar. A escalada não era muito difícil mas era bem mais longa do que aparentava a princípio, e logo estávamos totalmente molhados.

Depois de algum tempo não tínhamos mais certeza de estar escalando na direção certa, era possível que houvéssemos desviado um pouco da rota certa e isso nos faria chegar em algum trecho mais difícil de escalar. De qualquer maneira a escalada já havia se tornado bastante difícil, especialmente por a pedra estar molhada e estarmos com frio. Além disto não tínhamos nenhuma corda ou equipamento de segurança e uma queda do ponto aonde estávamos seria mortal.

Resolvemos voltar atrás e subir pelo Passo Guillaumet mesmo pois era mais seguro.

Tínhamos que descer devagar antes de poder recomeçar a subir e por isso começamos a sentir ainda mais frio, estávamos até tremendo um pouco. O tempo continuava a piorar e as nuvens acabaram por encobrir o próprio Passo e o local até aonde havíamos escalado.

Seria inútil subir até o Passo, a única coisa que poderíamos ver lá de cima seriam nuvens, e por isso concordamos em descer. Precisávamos nos movimentar para aquecer e não perdemos tempo nos lamentando pela escalada frustrada. Valeu a pena ter subido até ali, havíamos chegado a 2150 metros de altitude, a apenas 50 metros do Passo, e tínhamos uma belíssima vista das montanhas menores à nossa volta e do Passo Marconi à distância. O tempo encoberto e a mistura de chuva e neve que estava caindo dava uma aparência tenebrosa a paisagem e aumentava a nossa emoção. Durante a descida encontrei um pedaço de corda e um bastão de caminhada abandonado por alguma expedição e os levei como souvenir e para nos dar segurança na volta através do glaciar.

Atravessamos o glaciar praticamente correndo sobre nossas pegadas para nos aquecer, e logo chegamos a uma pedra grande atrás da qual nos protegemos do vento e fizemos um delicioso lanche com pão, salame, biscoitos e até chocolate. Isso fez com que nos sentíssemos bem melhor, e logo chegamos de volta à Piedra del Fraile.

Chegando lá encontramos Alessio, companheiro de Maurizio na expedição de espeleologia. Ele nos contou que havia caminhado em direção ao Glaciar Marconi e viu a expedição dos argentinos se preparando para atravessar o Rio Elétrico. Eles estavam atravessando o rio no lugar errado, a apenas um quilômetro do local certo. Ele disse que não entendeu o porque disto pois se ele que havia vindo da Itália sabia onde era o local mais adequado para atravessar o rio, com certeza o guia, que era argentino, sabia também .

O resultado desta imprudência foi que a repórter de televisão e um dos cameraman, perderam o equilíbrio no meio da travessia do rio e foram arrastados pela correnteza. A água estava correndo rápido, na altura da cintura, e é muito difícil recobrar o controle dos movimentos uma vez que se é arrastado, devido ao frio e as roupas molhadas que tornam difícil se mexer. Os guias correram inutilmente pelas margens do rio gritando para que aqueles que estavam na água nadassem em direção à margem. Finalmente os repórteres saíram da água, a mais ou menos trinta metros abaixo do local onde eles haviam escorregado, duros de frio. Os guias então fizeram uma fogueira para aquecê-los e secar as suas roupas, e acabaram acampando por ali mesmo .

Alessio contou tudo isso com um tom de desprezo na voz criticando muito a atitude dos guias, que segundo ele, quase mataram duas pessoas depois de apenas uma hora de caminhada, ainda em uma zona relativamente segura, correndo um risco totalmente desnecessário.

Eu lhe perguntei se o risco havia sido tão grande assim com água apenas na altura da cintura, e ele me respondeu que o risco maior não era devido a profundidade da água e sim devido a temperatura.

Todos esses rios próximos a glaciares são formados pela água do degelo do próprio glaciar e são extremamente frios. Quando uma pessoa cai numa água tão fria e molha a cabeça, corre um grande risco de desmaiar devido ao choque térmico e consequentemente morrer afogado pois é muito difícil que alguém consiga encontrar e retirar o corpo da água a tempo para uma ressuscitação.

A conversa se concentrou então nos riscos que caminhar no gelo pode apresentar. Aproveitei a presença dos dois experts e obtive todas as dicas que podia, afinal eu mesmo estava planejando fazer uma caminhada sobre o Campo de Gelo Sul, e ao que tudo indicava eu iria estar lá sozinho.

Maurizio me explicou que o maior risco em se caminhar no gelo é cair dentro de uma fenda. Os glaciares estão em constante movimento e esse movimento causa fendas na superfície do gelo. Essas fendas variam de tamanho e profundidade mas tem uma característica em comum, se estreitam no fundo assumindo uma forma de “v”, com a parte mais larga na superfície e o vértice no fundo. Essa característica faz com que a pessoa que cai numa fenda tenha grandes possibilidades de se entalar no fundo e ficar praticamente impossibilitada de se mover. Caso isso aconteça a pessoa depende quase que exclusivamente de ajuda externa para sair da fenda. É uma operação trabalhosa que requer técnica no manuseio de cordas e muita força.

Caso uma pessoa caia em uma fenda e não tenha ninguém para resgatá-la, ela terá poucas chances de se auto resgatar, mesmo com equipamento adequado, como grampons (espécie de garras de ferro que se colocam nas botas, para ter aderência no gelo), e picareta para gelo. No meu caso eu não tinha nenhum equipamento e teria que absolutamente evitar cair numa fenda.

As fendas são especialmente perigosas quando estão cobertas de neve pois se tornam praticamente invisíveis. Maurizio me tranquilizou dizendo que na zona onde eu pretendia caminhar não havia fendas e também não havia neve. Ele havia explorado aquela área, próxima ao Passo del Viento, em busca de cavernas no gelo e me garantiu que era seguro caminhar sozinho por ali.

Ele me contou que não havia encontrado grandes cavernas por lá, mas que eu encontraria algumas pequenas se caminhasse nas bordas da geleira, aonde o gelo se encontra com a pedra.

Maurizio me deu outro conselho, o de tomar muito cuidado com os pequenos rios de degelo que correm sobre a geleira. O leito destes rios é extremamente escorregadio e se uma pessoa escorrega ao atravessar, pode ser arrastada pela correnteza ou simplesmente escorregar pelo gelo liso caso o rio seja inclinado. O que ocorre é que muitas vezes estes rios terminam em uma espécie de cachoeira que despenca dentro das famosas cavernas, aonde acabam por formar um lago. É morte na certa. Felizmente os rios que encontraria seriam bem pequenos e não representavam risco algum.

Por falar em rios, eu também teria pela frente, antes de chegar ao Campo de Gelo, uma travessia de rio considerável, e deveria fazê-la de manhã cedo quando o nível da água é mais baixo. Deveria ter cuidado com a profundidade da água e força da correnteza, que pode “arrancar” os pés do chão e dar uma “rasteira” em quem está atravessando, e aí as coisas podem se complicar.

A última recomendação era a de ter bom senso e não se arriscar desnecessariamente, observar o clima atento a mudanças, e não hesitar em recuar caso sentisse necessidade.

Foi ótimo encontrar Maurizio e Alessio. Além se serem simpáticos e interessantes, haviam me esclarecido muitas coisas. Desde o Brasil, eu estava namorando a idéia de caminhar no Campo de Gelo, mas me sentia inseguro pelo fato de não ter nenhuma experiência no gelo e também por estar indo sozinho. O livro do qual eu extraía informações para as caminhadas, o “Trekking in the Patagonian Andes” dizia que a caminhada até o Passo del Viento, o portão de entrada para o Campo de Gelo, só deveria ser feita por grupos, e mesmo assim composto por pessoas super experientes. O livro nem mencionava a possibilidade de caminhar no gelo. Graças aos italianos eu pude fazer uma reavaliação dos riscos e possibilidades de fazer a caminhada, e havia resolvido ir.

A nossa conversa acabou durando o jantar inteiro e fui dormir pensando em quantas coisas legais a viagem havia me proporcionado até então e em quantas ainda me proporcionaria.

Na manhã seguinte comi o resto do jantar para o café da manhã pois a minha comida havia acabado, de forma que também desmontei a minha barraca e me preparei para voltar a Chalten, aonde iria me preparar para ir até o Campo de Gelo Sul.

Em cerca de duas horas descendo pela trilha que acompanhava o rio, cheguei a ponte do Rio Elétrico, e a partir daí caminhei pela estrada que levava a Chalten. Logo passou uma perua carregada de turistas e peguei carona com eles, que pararam ao me ver fazendo sinal. Quase todas as caronas que peguei na Patagônia foram assim, o primeiro carro que passava me levava, não sei se foi por eu ser uma pessoa de sorte ou se é realmente fácil pegar carona por lá.

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