segunda-feira, 15 de outubro de 2007

14 - Deserto do Atacama


Sobre o deserto propriamente dito, eu sabia que era um dos mais secos do mundo, se é que não era o mais seco. Sabia também que a altitude média era bastante alta e que por isso eu teria problemas com a rarefação do ar e com o frio. A paisagem seria marcada pela presença de vários vulcões e também pelos vários Salares, ou lagos salgados ressecados.

Essas informações eram realmente poucas mas a bicicleta é um meio de transporte extremamente versátil, e os equipamentos que eu usara na Patagônia seriam praticamente os mesmos que usaria no deserto. O único equipamento que precisei comprar foi um porta garrafas para garrafas de um litro e meio. O resto eu já tinha. Aliás, eu acabei deixando em Santiago o meu equipamento de pesca e a jaqueta amarela de chuva.

Em Santiago embarquei para Calama, viajando por vinte e quatro horas de ônibus. A paisagem mudou radicalmente, se tornando extremamente desértica.

Em Calama eu começaria a pedalar, em direção a cidade de San Pedro de Atacama, de onde eu iria prosseguir deserto adentro. Eu tinha apenas duas semanas para explorar a região e por isso não poderia ir muito longe. Resolvi fazer um percurso de forma circular, saindo de San Pedro e retornando ao mesmo local depois de percorrer aproximadamente 500 km.

A partir de San Pedro eu seguiria por uma estrada na direção oeste, até o Salar de Cauchari, que fica na Argentina. Em Cauchari eu prosseguiria por outra estrada que retornaria a San pedro, atravessando o “Paso Sico”. Eu iria pedalar a uma altitude média de 4500m, mas que atingiria até 5000m em alguns trechos! O cenário prometia ser fantástico conforme ia me informando com as pessoas.

Me informei sobre as condições da estrada entre Calama e San Pedro, inicialmente com um motorista de ônibus que “conocia bien lá region”. Ele me disse que a estrada era toda asfaltada, com muita descida. Quando eu lhe perguntei se era possível conseguir água pelo caminho ele me respondeu que não haveria problema algum pois estava sendo construída uma ferrovia paralela à estrada e havia vários acampamentos de operários aonde eu poderia conseguir água.

Tendo recebido tão boas notícias fui almoçar em um pequeno restaurante, aonde fiz amizade com o proprietário, que era caminhoneiro e havia morado no Brasil. Depois do almoço, enquanto me despedia, comentei sobre a estrada de ferro em construção entre Calama e San Pedro. Ele me olhou com um olhar de interrogação e me perguntou; “Que estrada é essa?”

Resumindo, o motorista de ônibus com o qual eu havia me informado, não conhecia a região tão bem assim, ou tinha um péssimo senso de humor, pois não havia nenhuma estrada em construção, e muito menos acampamentos aonde se pudesse encontrar água.

Por sorte eu havia checado a informação. O dono do restaurante me deu um garrafão com capacidade para cinco litros de água, que somados a outras duas garrafas de um litro e meio cada, me davam uma autonomia de 8 litros de água, que eu calculava serem suficientes para um pouco menos de dois dias de viagem.

Tinha pela frente 92 km de estrada asfaltada até San Pedro, e 8 litros deveriam ser mais do que suficientes. Além do mais, a estrada era muito movimentada e poderia parar um carro caso tivesse alguma dificuldade.

Acabei começando a pedalar no meio da tarde e até o anoitecer completei 46 km. A estrada era relativamente plana, mas eu sentia um pouco o efeito da altitude e tinha um pouco de dor de cabeça.

A emoção por estar pedalando de novo e em um lugar diferente era grande. Armei a barraca a uns cem metros de distância da estrada e jantei olhando as estrelas.

Na manhã seguinte, depois de tomar café da manhã, me livrei do excesso de água que estava carregando, ficando com apenas três litros de água. Tinha mais 47 km pela frente e calculava completá-los em 4 horas no máximo.

Começei a pedalar às 8 e meia da manhã, um verdadeiro acontecimento! Entretanto, depois de apenas 20 km, dois raios da roda traseira arrebentaram.

Troquei-os rapidamente, mas não conseguia encher o pneu com a minha bomba. Depois de insistir por mais algum tempo acabei ficando totalmente revoltado e resolvi pegar uma carona até San Pedro. Aquilo era o cúmulo, estar pedalando do outro lado da América do Sul com uma bomba de ar ineficiente. Já tinha feito uma bolha feia na mão de tanto tentar encher o pneu, e ele continuava meio murcho.

Com a carona cheguei logo em San Pedro, aonde fui imediatamente procurar um posto de gasolina para encher o pneu. Não encontrei posto algum e por isso fui até o posto de fronteira para ver se encontrava alguma bomba. Apesar de San Pedro estar a mais de cem quilômetros da fronteira, o controle da alfândega e da imigração são feitos ali mesmo.

Na fronteira não havia carro algum, apenas uns turistas esperando na sombra por um ônibus. Para minha surpresa, vi uma bicicleta de um cicloturista encostada na parede. Imediatamente identifiquei o proprietário da bicicleta sentado no chão junto a alguns dos turistas.

“Ótimo”, pensei, ele deve ter uma bomba que sirva para alguma coisa e deve ter boas informações sobre o deserto. Fui me aproximando e fiquei chocado com o que vi. Ele estava sentado de costas para mim e vestia uma camiseta toda rasgada. Nos lugares onde a camiseta havia rasgado eu podia ver marcas de queimaduras de Sol. A pele já havia descascado uma vez e bolhas haviam se formado na pele nova que havia ficado exposta sem proteção.

“Nossa!”, pensei, com certeza esse cara deve ter alguma história pesada para contar. Deve ter se perdido em algum lugar e passado por apuros.

Cumprimentei as pessoas e perguntei quem seria o dono da bike. Andreas virou e nos apresentamos. Ele estava sorridente e despreocupado, não aparentava ter passado por nenhuma dificuldade. Só depois, ao conhecê-lo melhor é que vim a saber o quanto ele era despreocupado em relação à sua aparência e a outras coisas também . Para ele era normal andar com as roupas cheias de buracos e não se preocupar com o sol lhe queimando.

Apesar da aparência de “selvagem da bicicleta”, Andreas era extremamente simpático e logo simpatizamos um com o outro. Ele me emprestou a sua bomba, que funcionava com uma leveza deliciosa. Só de birra me deu vontade de encher e esvaziar os meus pneus várias vezes, mas me contive.

Andreas era alemão, mas como ele mesmo dizia, também era meio uruguaio, pois vivia por lá há 11 anos criando gado. Ele era uma figura muito interessante, e todo ano fazia uma longa viagem de bicicleta. Ele havia acabado de chegar em San Pedro, tendo chegado através do Paso Sico, na fronteira com a Argentina. Ele iria ficar na cidade por uns dois dias e depois regressaria à Argentina pelo Paso de Jama, exatamente como eu planejava fazer. Imediatamente concordamos em viajar juntos, e fomos à cidade procurar por um camping.

Depois de devidamente instalados, fui dar umas voltas pela cidade sozinho, pois Andreas já conhecia o local de outras viagens que havia feito por ali.

San Pedro é um oásis no meio do deserto, com casas de parede de barro, algumas pintadas de branco, e outras sem pintar, de cor bege claro, a cor da terra por ali. A cidade vive em um ritmo lento, pois não há muito para se fazer e o calor não permite que nada seja feito às pressas. A cidade é pequena e bem arborizada graças à um engenhoso sistema de irrigação que transporta a água por vários quilômetros, desde as nascentes até a cidade.

Apesar de o Atacama ser uma região extremamente inóspita, existe grande quantidade de sítios arqueológicos na região, que indicam a presença do homem na área a mais de 10.000 anos. No museu da cidade pode se ter uma boa idéia de como a vida evoluiu na área, e de como o homem foi aprendendo a transformar o ambiente e extrair o seu sustento dele. O mais impressionante no museu são as múmias, com mais de 10.000 anos , e que se mantiveram incrivelmente conservadas devido a baixa umidade do ar.

San Pedro é muito pitoresca e funciona como uma perfeite base para se explorar o deserto. Existem várias agências de turismo que oferecem passeios às regiões mais interessantes, inclusive excursões ao Salar de Uyuni, na vizinha Bolivia. É possível inclusive alugar mountain bikes de boa qualidade para fazer pequenas excursões.

Acabamos ficando dois dias em San Pedro pois encontramos muitas pessoas interessantes por lá. O lugar é uma verdadeira encruzilhada aonde os viajantes se encontram e se concentram, e conta com várias opções de divertimento noturno.

Infelizmente, nem eu nem Andreas tínhamos dinheiro para aproveitarmos o que o local tem para oferecer e por isso nos conformamos em partir o mais rápido possível.

Tive a surpresa de constatar que Andreas era ainda mais lento do que eu para levantar acampamento pela manhã, de forma que somente às 10:30 começamos a pedalar.

Nossa meta para o dia era pedalar aproximadamente 35 km de subida, e depois 15 de descida, entrando na Bolívia para visitar a Laguna Blanca. O nosso grande obstáculo seria a altitude pois estaríamos saindo de San Pedro, a uma altitude de 2000 m, para subir até um passe de 4700m, e depois descer até a Laguna Blanca, a 4400 m.

À distância a subida não parecia ser difícil de ser vencida pois o aclive não era muito acentuado. Oque ocorre é que devido à baixa umidade do ar, tem-se a impressão de estar muito mais perto dos lugares do que na realidade se está, conforme logo iríamos descobrir.

Os primeiros 15 km de estrada eram planos além de serem asfaltados, moleza. Em seguida iniciava-se a subida, muito suave, mas longa. Não precisávamos usar a marcha mais leve da bike, mas não tínhamos energia como de costume, por causa da rarefação do ar, e pedalávamos sentindo uma leve dor de cabeça.

Depois de uma hora subindo nestas condições percebi que seria difícil chegarmos a Bolívia naquele dia se continuássemos tão lentos.

A solução logo surgiu na forma de um pesadíssimo caminhão, que vinha se arrastando lentamente subida acima. Quando ele nos ultrapassou agarramos na sua traseira e prosseguimos assim por oito quilômetros. O asfalto acabava ali e não era possível seguir daquela forma por causa da poeira do caminhão. A partir de então teríamos somente estrada de terra pela frente.

San Pedro já estava longe, minúscula, bem mais baixo do que nós.

Reiniciamos a pedalada, progredindo devagar, sofrendo com o sol e a altitude. Depois de uma hora paramos para descansar às margens de uma espécie de lago artificial de águas bastante repugnantes.

Logo surgiu um outro caminhão, que encostou no laguinho para encher o radiador, que estava quase fervendo com o esforço da subida. O motorista era um boliviano muito simpático, que veio conversar conosco. Ele tinha uma informação desagradável para nós. Ainda estávamos no meio da subida apenas, e a partir dali o aclive se tornava mais acentuado. Como se isso não bastasse, teríamos pela frente vários trechos de areia fofa, oque logicamente iria tornar as coisas mais difíceis ainda.

Nosso amigo gentilmente se ofereceu para nos levar na caçamba, o que aceitamos sem muita hesitação. Pudemos observar o quão longe ainda estávamos do fim da subida, e chegamos a conclusão que éramos duas pessoas de sorte por não termos que pedalar aquilo tudo respirando um ar tão rarefeito.

Voltamos a pedalar a partir da encruzilhada que levava à Bolívia. O visual era impressionante, estávamos à 4600m de altitude, deixando para trás a enorme planície de onde havíamos saído. Bem à nossa frente tínhamos o majestoso vulcão Licancabur, um cone perfeito coberto de neve, com 5900 m de altitude.

O relevo à nossa frente era uma espécie de platô, com uma altitude média de 4500m, interrompido por montanhas, em sua maioria vulcões extintos, que tinham uma altitude entre 5500 e 5900 m. A paisagem variava entre o marrom bem claro e o escuro, chegando até a ser vermelha às vezes. Algumas encostas avermelhadas estavam cobertas por uma espécie de grama dourada, compondo um cenário incrível e inesperado em um deserto.

O Atacama não me parecia ser tão seco assim, no meio deste platô estava a Laguna Blanca, que já podíamos ver à distância. Ela era obviamente branca, devido à alta concentração de sal em suas águas. A água estava absolutamente calma, refletindo o cume nevado dos vulcões que rodeavam a Laguna.

Foi uma delícia descer observando um visual tão especial. Bem ao lado da Laguna Blanca estava a Laguna Verde, que aparentava estar ali somente para provar que aquele era um lugar totalmente inusitado, com combinações surpreendentes de cores.

Na fronteira da Bolívia não havia controle algum e por isso prosseguimos até as margens da Laguna Blanca, aonde havia uma espécie de hotel, que também aparentava estar abandonado. Fizemos um lanche e uma siesta pois estávamos cansados e com dor de cabeça.

Acabou aparecendo um senhor que cuidava do hotel e ele nos deu as boas vindas, nos mostrando também aonde podíamos pegar água fresca. Ele nos contou que o pessoal da imigração Boliviana apareceria na manhã seguinte, e também nos indicou um bom lugar para acampar. Em seguida comentou que à noite fazia uma temperatura media de quinze graus negativos por ali.

Eu mal podia acreditar, pois estava de shorts e camiseta, mas a partir do momento que o sol começou a abaixar no horizonte, começou a soprar um forte vento que fez com que a temperatura abaixasse rapidamente. Nos dirigimos ao local de acampamento, a dois quilômetros das margens da Laguna, enquanto eu me perguntava como iria fazer para suportar o frio, já que o meu saco de dormir era feito para suportar até apenas oito graus negativos, em condições extremas.

Montei a minha barraca rapidamente e depois me ofereci para ajudar Andreas, que ainda não havia acabado. Ele me disse que estava tudo sob controle e por isso entrei na minha barraca e me enfiei no meu saco de dormir.

Depois de alguns instantes ouvi um barulho estranho, de pano sendo sacudido pelo vento e de algo sendo arrastado pelo chão. O barulho veio em direção a minha barraca e depois se afastou rapidamente. Em seguida escutei Andreas proferindo uma série de palavrões em alemão, espanhol e inglês, ao mesmo tempo que começava a correr. Abri o zíper da minha barraca para ver a cena mais tragicômica de toda a viagem, Andreas em inútil perseguição a sua barraca que estava sendo levada pelo vento e descia velozmente em direção à laguna.

Felizmente a barraca enroscou em uns arbustos alguns metros antes de entrar na laguna. Andreas voltou uma hora mais tarde, exausto por tentar correr com tamanha rarefação no ar.

Nos despedimos e fomos dormir. Eu vesti todas as minhas roupas e cobri o saco de dormir com meu cobertor de alumínio. Ao contrário do que esperava dormi muito bem, provavelmente devido ao cansaço gerado pela altitude. De manhã cedo o lado externo de meu saco de dormir estava ligeiramente congelado. Uma garrafa de água que eu havia guardado dentro da mochila, dentro da barraca, estava totalmente congelada!

Levantamos tarde, quando o sol já havia aquecido um pouco a temperatura. Não iríamos pedalar para dar aos nossos corpos chance de se habituar à diferença de altitude. Havíamos inicialmente planejado caminhar até o cume do vulcão Licancabur, com 5900m, mas a subida aparentava ser demasiado íngreme, precisaríamos de mais um dia de aclimatização antes de subir até lá.

Resolvemos caminhar até o cume do vulcão Juriques, que estava imediatamente atrás de nossas barracas, era muito menos íngreme, e segundo Patricio, o senhor que cuidava do hotel, tinha apenas 4700m, somente 300m a mais de onde estávamos.

Começamos a subir, era incrível como estávamos sem fôlego. Mesmo no plano caminhávamos com dificuldade. Depois de mais de duas horas de caminhada, se tornou óbvio que Patrício havia se enganado em relação à altitude da montanha (descobri depois que a altitude correta era de 5700m, e não 4700). Estávamos muito alto, e tínhamos a impressão de estar olhando para uma foto de satélite quando olhávamos para baixo.

Estávamos sofrendo bastante para subir pois não havia trilha alguma e a encosta da montanha era coberta por pequenos fragmentos de pedra que afundavam sob nossos pés, dificultando ainda mais o nosso avanço. Parávamos frequentemente, e cada vez demorávamos mais para recomeçar a caminhar.

A aproximadamente duzentos metros abaixo do topo, comecei a me sentir enjoado, com vontade de vomitar, e resolvi desistir. Aquilo havia se transformado em sofrimento puro, e além disto eu sabia que não devia subestimar os efeitos da altitude. Eu não sabia exatamente quais eram os sintomas que tornavam uma descida para altitude menor obrigatória, mas estava desconfiado que enjôo era um deles.

Andreas resolveu continuar, mesmo sabendo que, devido ao horário, só tinha mais duas horas para chegar ao topo e começar a descer.

Nos separamos, e ainda demorei um bom tempo para chegar ao acampamento. Aproveitei o tempo que me sobrara e fui até o hotel carimbar o meu passaporte com a imigração Boliviana. Fui atendido por um rapaz agressivo de uns vinte anos, que insistia em que eu lhe pagasse vinte dólares pelo “visto”. Eu lhe disse que havia me informado com o consulado da Bolívia antes de ir para lá e sabia que o que ele me daria seria somente um carimbo de entrada no país, e não um visto, e portanto eu não tinha que pagar nada. Para acalmar o guarda eu lhe ofereci a minha bike para que ele desse uma voltinha caso quisesse.

Ele topou e chamou um colega para fotografá-lo enquanto andava em círculos pelo pátio do hotel. Engraçado como ele se transformou tão rapidamente de um rapaz agressivo em uma criança.

No fim da tarde Andreas apareceu, ele havia demorado apenas uma hora a mais para chegar ao topo, e não havia tido nenhum incidente no caminho.

Na manhã seguinte voltamos a pedalar, mais aclimatizados à altitude e devidamente abastecidos com folhas de coca para amenizar a dor de cabeça que não nos abandonava.

As folhas de coca são comercializadas livremente em todo o Altiplano Boliviano e utilizadas para combater os efeitos da altitude como dor de cabeça e tonturas. A coca age como uma espécie de anestesia, eu sentia a minha boca ligeiramente dormente, e um alívio na dor de cabeça.

Os primeiros vinte quilômetros foram de subida leve, voltando pelo mesmo caminho pelo qual havíamos descido, e depois viramos à esquerda em direção ao Paso de Jama, na fronteira com a Argentina.

Depois disto a estrada se tornou razoavelmente plana, seguindo a uma altitude média de 4500m, com descidas e subidas ocasionais, que não atrapalhavam muito o nosso rendimento.

As condições da estrada eram ótimas e seguimos sem problemas por mais 25 km, aonde encontramos um grande acampamento de trabalhadores que estavam ampliando a estrada. Entramos no acampamento e nos dirigimos ao refeitório, aonde perguntamos ao cozinheiro se podíamos “filar” uns copos de chá enquanto fazíamos o nosso lanche.

O cozinheiro não se opôs a nossa idéia e assim pudemos lanchar tranquilamente em um lugar aquecido, e tomar algo quente sem ter que ferver água.

Continuamos a pedalar, a estrada agora estava descendo e continuou assim por mais 20km, antes de recomeçar a subir.

Começamos a subir com vontade, mas logo o nosso rendimento caiu pois não tínhamos resistência. Continuamos a subir por mais de uma hora, atingindo uma altitude de 4800m antes de recomeçar a descer.

A esta altura já estava quase anoitecendo e estávamos literalmente tremendo de frio pois não tínhamos parado para por roupas mais pesadas. Fizemos uma rápida parada para nos agasalhar antes de começar a descer, e eu tive problemas para encaixar o zíper da minha jaqueta pois as minhas mãos tremiam demais.

Descemos com os corpos rígidos em cima das bikes até uma altitude mais baixa aonde encontramos um barranco que nos protegia do vento, que soprava forte todas as tardes.

Montamos as barracas, lutando contra o vento que as sacudia de um lado para outro, e nos enterramos dentro de nossos sacos de dormir para nos aquecermos um pouco. Depois de estar me sentindo melhor começei a me preparar para dormir de verdade. Havia desistido de cozinhar pois não tinha fome, apenas frio, e além disto as pilhas da minha lanterna haviam acabado.

Já estava escuro dentro da barraca e eu me preparava para dormir me orientando pelo tato. Primeiro vesti quase todas as minhas roupas. Deixava apenas uma calça e a jaqueta, que dobradas formavam o meu travesseiro. Feito isso eu preparei o meu invólucro de cobertor de alumínio, esticando um barbante por cima do meu corpo e pendurando o cobertor por cima dele. Feito isso eu colocava as garrafas de água junto aos meus pés para que a mesma não congelasse durante a noite.

Pronto, finalmente eu estava pronto para dormir e fui relaxando rapidamente. Quando estava quase adormecendo tive a impressão de que a minha mão estava na água. Acordei melhor e percebi que não estava sonhando, a minha mão realmente estava na água. Uma das garrafas estava mal fechada e toda a água havia vazado dentro da barraca!

A barraca estava inclinada para um dos lados e rolei, ainda dentro do saco de dormir, para a parte mais elevada, aonde não havia água.

Por sorte o meu saco de dormir não havia molhado, a água escorregou para o canto mais baixo da barraca, molhando apenas o colchão e o chão da barraca.

Para poder dormir sem risco de me molhar saí da barraca levando o colchão e coloquei-o no chão, inclinado, de modo que o vento o secasse. Usando uma toalha retirei a água que havia formado um pequeno lago dentro da barraca e depois posicionei a mesma de maneira que o vento acabasse de secá-la. Enquanto isso esperei, enrolado no saco de dormir do lado de fora da barraca. Em quinze minutos de vento já estava tudo seco e eu pude repetir todo o ritual para dormir, desta vez me certificando que a minha última garrafa de água estava bem fechada.

Acordei cansado na manhã seguinte e fiz uma panelada de musli para me recompor. Enquanto arrumávamos as nossas coisas um caminhão passou por nós e fizemos sinal para que eles parassem e assim pudéssemos encher as nossas garrafas de água.

Durante os sete dias que pedalei pelo deserto, acabei nunca carregando mais de três litros de água. Eu tinha o garrafão que havia ganho do dono do restaurante mas havia sempre carros passando pela estrada. Eles paravam ao nos ver fazendo sinal e nos davam água sem nenhum problema. Por isso eu nem enchia o garrafão, que tinha capacidade para 5 litros, e assim podia viajar com menos peso.

Deixando o local onde acampamos, seguimos por uma leve descida por 15 km e depois contornamos um grande lago de águas salgadas. Depois de mais 14 km paramos de novo pois eu estava muito cansado, e fizemos um lanche.

Deitamos no meio da estrada e ficamos tomando um pouco de sol e conversando. O tempo foi passando e eu fui ficando com mais preguiça ainda pois sabia que a nossa frente teríamos 30 km de subida até o Paso de Jama, na fronteira com a Argentina.

Quando eu havia me resignado a continuar pedalando, vi ao longe uma nuvem de poeira que se movia em nossa direção.

Na realidade eram quatro nuvens de poeira, que pertenciam a quatro caminhonetes dirigidas por paraguaios. Eles pararam para conversar conosco e contaram que haviam comprado os carros em Iquique no Chile. Iquique é uma cidade com isenção de impostos de importação, uma espécie de “Zona Franca”, e ali vão muitas pessoas do Paraguai comprar carros e motos importados para levar ao seu país e aí vendê-los por um bom lucro. Por isso estávamos encontrando tanto movimento naquela estrada perdida no meio das montanhas.

Um dos motoristas nos fez a oferta fatal perguntando se queríamos ser carregados até o Paso de Jama já que até lá seria só subida. Lá fomos nós, os ciclistas mais fajutos do deserto, sentados na boleia de mais uma caminhonete.

Obviamente a distância foi vencida rapidamente, e logo paramos no posto de fronteira argentino. Um guarda mal encarado nos veio dar as boas vindas, implicando com o motorista por estar nos levando na caçamba, o que era proibido. Outros guardas mais simpáticos apareceram e convenceram o primeiro a nos deixar em paz.

Carimbamos nossos passaportes sem problemas e continuamos a pedalar, desta vez em terreno quase plano. Como era fácil viajar assim, pedalando somente no plano ou na descida, e pegando caronas nos trechos mais difíceis.

Continuamos assim por mais 30 km, tendo como único obstáculo o forte vento que soprava todas as tardes vindo do oeste. No fim da tarde começamos a procurar um lugar para acampar, o que era um verdadeiro problema naquela área. Havia espaço de sobra para armar as barracas, o problema é que o terreno era absolutamente plano não oferecendo nenhuma proteção contra o vento.

Acabamos pedalando por 15 km até encontrar um local abrigado do vento, dentro de um buraco cavado por uma escavadeira que havia retirado um pouco de terra dali, por algum motivo desconhecido.

O buraco formava um abrigo perfeito contra o vento, tendo inclusive um delicioso chão plano e macio. Preparamos o jantar enquanto conversávamos. Na realidade eu era o único a comer, Andreas nunca comia à noite e de manhã cedo tomava apenas mate. Eu não conseguia entender de onde ele conseguia tirar energia para pedalar comendo tão pouco.

De qualquer forma ele era um ótimo companheiro de viagem, nos entendíamos perfeitamente, sem muitas discussões. Para ele tudo estava sempre bom, a hora de parar para comer, a hora de parar para acampar, pegar carona.

No dia seguinte pedalamos 30 km até chegarmos a uma bifurcação, as margens do Salar de Cauchari. Ali nossas rotas divergiam, eu iria seguir para o sul, em direção ao Paso Sico, que me levaria de volta ao Chile, e Andreas iria para o norte para depois seguir em direção ao Paraguai.

Almoçamos juntos enquanto esperávamos que passasse algum carro para me dar carona. Desta vez o motivo para pegar carona era a falta de tempo pura e simples. Minhas férias estavam acabando e eu precisava estar em Santiago dentro de apenas uma semana para embarcar de volta ao Brasil.

A estrada que passa às margens do Salar de Cauchari é muito pouco utilizada e por isso precisamos esperar um bom tempo até que passasse o primeiro carro, um caminhão que logo encostou ao nos ver fazendo sinal.

Me despedi rapidamente de Andreas, que me ajudou a carregar a bike no teto do caminhão. Em poucos minutos já estávamos seguindo viagem, o caminhão estava carregado de mercadorias para serem vendidas ao longo do caminho para os moradores que viviam por ali, isolados e sem nenhuma cidade por perto.

Os principais clientes eram os trabalhadores de uma mina de sal localizada no meio do Salar. Além deles havia apenas duas ou três famílias vivendo em pequenos barracos difíceis de serem vistos por olhos que não fossem acostumados àquelas paisagens.

Estávamos dirigindo através de uma planície predominantemente branca, devido ao sal seco que aflorava à superfície. A planície era pontuada por pequenas manchas de capim amarelo e pequenas áreas alagadas que refletiam o azul do céu. A área toda era rodeada por montanhas, aos pés das quais se encontravam ocasionalmente os poucos moradores da região. Era uma região desolada e crua, mas com uma beleza bruta e inusitada devido à predominância do branco no colorido.

Demoramos um longo tempo para atravessar os aproximadamente 70 km do Salar, pois a estrada era péssima, com muitos buracos. Finalmente chegamos nas imediações da vila de Cauchari, de onde partia uma estradinha que levava em direção ao Chile.

Desci do caminhão neste ponto e enchi minhas garrafas de água com três litros apenas, pois a fronteira não estava longe. Me despedi dos meus companheiros vendedores ambulantes motorizados, e começei a pedalar.

Antes de montar na bike tive uma surpresa desagradável, o meu ciclocomputador havia quebrado. Sem ele não teria como saber com precisão quantos quilômetros estava pedalando, e nem as horas.

Era um equipamento importante que eu consultava frequentemente, mas não era absolutamente indispensável. Eu ainda tinha o meu mapa, e também aprendera a avaliar com certa precisão as distâncias somente com a visão.

A fronteira do Chile estava diretamente à minha frente. A estrada descia por 17 km (conforme indicava uma placa) até o Paso Sico. Geralmente “passe” significa o ponto mais alto em um caminho pelas montanhas, mas no Chile e Argentina “Paso” tem a conotação de “Paso Fronteirizo”, e o ponto mais alto de uma estrada recebe o nome de “Portezuelo”.

Em pouco tempo cheguei em Paso Sico, aonde estava sendo construído um posto para a Policia de Fronteira Argentina. Logo após o Paso, que está à uma altitude de 4080 metros, iniciava se uma longa subida. Conforme Andreas havia me informado, eu pedalaria 11 km de Paso Sico até a fronteira propriamente dita, aonde havia apenas uma placa. A partir da fronteira pedalaria mais 18 km de subida até o posto de polícia de fronteira chileno, aonde poderia encontrar água.

Eram portanto somente 29 km de subida até encontrar mais água, e por isso continuei com apenas os meus três litros de água. Poderia pegar mais com carros que eventualmente passassem por ali, caso necessitasse.

Já estava no fim da tarde e portanto não percorri uma grande distância antes de parar para acampar, à apenas 2 km da fronteira.

Armei a barraca e começei a cozinhar. Na maioria das vezes o meu cardápio para o jantar era composto de macarrão feito com um molho à base de sopa tipo Maggi com um pouco de carne de soja (feita no Brasil e exportada para o Chile e Argentina), e alguma verdura fresca que estivesse levando, geralmente cenouras, cebolas e alho.

Durante toda a viagem pelo Atacama eu vinha tendo problemas para cozinhar macarrão, devido à altitude. O macarrão cozinhava excessivamente por fora, permanecendo duro por dentro. Era difícil encontrar um tempo ou ponto de cozimento ideal, e sempre acabava comendo uma gororoba de aspecto e consistência meio duvidosos.

Por esse motivo, nesta noite resolvi abdicar do macarrão e cozinhar somente a sopa com os outros ingredientes.

Quando a sopa mal acabara de começar a ferver, o meu fogareiro começou a falhar. Desliguei tudo e limpei-o como sempre fizera antes. Reacendi o fogareiro, mas não houve nenhuma mudança na intensidade da chama. Havia enchido o fogareiro com querosene de boa qualidade e ele trabalhava bem em altitude, portanto a única hipótese plausível para o problema era que eu não o havia limpado direito.

Repeti a operação meticulosamente e testei o bicho. Continuava a mesma coisa. Parti para uma autopsia. Talvez alguma válvula ou anel de vedação tivesse estragado. Realmente encontrei um anel que parecia folgado demais e resolvi trocá-lo por outro novo. No processo de extração do anel, acabei por arrebentá-lo.

Coloquei o outro anel, que por sua vez era apertado demais e que conforme descobri mais tarde nem devia ser posto ali.

Conclusão, eu acabei matando o paciente de vez, o fogareiro não deu mais sinal de vida.

Àquela altura já havia anoitecido e eu não tinha como procurar lenha para fazer fogo. Me resignei a comer a sopa meio crua, mas depois de um tempo resolvi parar pois achei que aquela coisa crua podia fazer mal para o estômago. Peguei minha lanterna para procurar um pouco de pão, e me lembrei que as pilhas haviam acabado. Encontrei pão e queijo com a ajuda da luz da Lua que estava nascendo a tempo de dar uma forçinha.

Comi enquanto fazia um balanço da situação. Durante o decorrer daquele dia eu havia me separado do meu companheiro de viagem, ficado sem relógio e odômetro, e destruído o meu fogareiro. Além disto os meus lábios doíam cada vez mais. Antes de sair de San Pedro eu comprei apenas manteiga de cacau para evitar que os lábios ressecassem pois pensava em usá-la em conjunto com o protetor solar que eu levava. Essa foi uma idéia bastante infeliz, e não estava adiantando muita coisa contra o sol que àquela altitude queimava muito. Eu lembrava de quando havia visto Andreas pela primeira vez, e ficava curioso em me olhar no espelho e ver a minha aparência.

Havia tido mais um dia cheio de emoções e tratei de dormir logo antes que a minha situação piorasse ainda mais.

Na manhã seguinte, tratei de acordar cedo e procurar lenha para acender um fogo e cozinhar a minha sopinha, mas não é muito fácil encontrar lenha no deserto.

Encontrei apenas os restos de um pneu de caminhão, com o qual improvisei uma fogueira, acendendo-a com um pouco de querosene.

A idéia funcionou bem, mas a comida ficou com cheiro e gosto de borracha queimada. Consegui comer tudo, pensando que o importante era que eu havia solucionado um dos meus problemas.

Coloquei a panela suja dentro de um saco plástico e guardei-a na mochila pois não tinha água suficiente para lavá-la.

Estava planejando chegar até os “Carabineros de Chile”, onde poderia lavá-la e talvez cozinhar a minha fiel panelada de Musli.

A estrada a partir da fronteira continuava a subir e eu pedalava devagar, tendo inclusive que empurrar a bike nos trechos mais íngremes.

Finalmente apareceu um caminhão, vindo do Chile. Ele parou ao ver o meu sinal e me informou que aquela era a última subida antes do posto dos carabineros. Eu lhe perguntei se ele tinha algum creme para proteção dos lábios, e ele me deu um pouco de “creme de Lechuga”, ou creme à base de alface. Era bem refrescante e aliviou bastante o incomodo. Pronto, havia solucionado mais um problema.

Realmente, do topo da subida pude ver o posto dos carabineros, a mais ou menos 8 quilômetros de íngreme descida, que percorri em velocidade máxima.

Os carabineros foram muito gentis e me deixaram cozinhar no fogão deles.

Após o almoço me informei sobre a distância até Socaire, a próxima cidade. Havia dois carabineros e um oficial da saúde pública no posto, e obtive três respostas diferentes, 60, 80, e 130 km.

Incrível um policial não saber a distância até a cidade mais próxima! Fazendo a média entre as respostas obtidas, consultando o meu mapa e lembrando as histórias de Andreas, cheguei à conclusão de que 110 era uma distância mais realista. Eu nunca saberia a distância verdadeira pois nunca obtive a mesma resposta das diversas pessoas a quem fiz essa pergunta.

Resolvi carregar os mesmos três litros de água desprezando o meu garrafão de cinco litros, pois teria muita descida pela frente e esperava encontrar carros pelo caminho.

Após o posto dos carabineros pedalei 5 km de subida e cheguei ao ponto mais alto de toda a viagem, um “portezuelo” com, segundo os carabineros, 5200m de altitude.

Como que para comprovar a veracidade da informação, começou a nevar enquanto eu parei para bater uma foto. Realmente eu sou uma pessoa de sorte, ver neve cair no deserto mais seco do mundo não acontece todos os dias. A neve era bastante fina e não me causou problema algum.

Coloquei todas as roupas para frio pois à minha frente teria quase 100 km de descida! Mal podia esperar para me vingar de todas as subidas que me haviam feito sofrer, fazendo esforço com ar rarefeito.

E difícil descrever a sensação de alívio em ter tamanha facilidade para percorrer tantos quilômetros. Finalmente o vento zunia nas minhas orelhas, e os meus olhos lacrimejavam com a velocidade da descida.

A neve, em altitude mais baixa se transformava em uma leve garoa, que realçava o contraste entre as cores. O cume das montanhas era branco, e as encostas tinham uma cor entre o marrom e o vermelho, de vez em quando interrompidas por manchas douradas de capim.

Eu descia rápido, mas a cada cinco minutos parava para bater fotos.

Prossegui assim até o fim da tarde, encontrando somente um carro, cujo motorista não soube informar a distância até Socaire.

Eu pretendia pedalar pelo menos até a Laguna Miscanti naquele dia pois pensava que lá poderia encontrar turistas acampando e eles poderiam me dar um pouco de água., mas eu parei muito para bater fotos e por isso anoiteceu antes que eu chegasse à laguna.

Continuei pedalando mesmo depois de escuro pois não estava cansado e acreditava estar perto da tal laguna, mas depois de um certo tempo fui obrigado a parar pois não conseguia mais enxergar muita coisa.

Com uma dose extra de sorte, encontrei lenha de ótima qualidade e em grande quantidade exatamente no momento que resolvi parar para acampar. Mal podia acreditar, o meu último problema do dia havia se resolvido!

Que ironia ter tantos problemas na noite anterior e no dia seguinte tê-los todos superados. A Lua apareceu, quase cheia, para iluminar enquanto eu armava a minha barraca.

Aquela era provavelmente a minha última noite acampando no deserto e fiz uma bela fogueira com a qual me aqueci e cozinhei. Desta vez fiz um pouco de purê de batatas desidratado, facilmente encontrado no Chile, acompanhado de uma porção de carne de soja, tudo temperado com curry.

Na manhã seguinte reacendi a fogueira, cozinhei o meu musli, e me preparei para partir, inclusive carregando comigo o que havia sobrado da lenha, para o caso de ter de acampar no deserto de novo.

Esperava encontrar logo a Laguna Miscanti, mas pedalei por um bom tempo sem nenhum sinal dela. Eu tinha apenas 700ml de água, mas estava certo de que encontraria algum carro que me ajudaria. Alem disto o caminho à minha frente era todo em descida e poderia atingir Socaire facilmente com apenas aquilo de água.

Continuei a pedalar, a estrada continuava sendo descida e eu estava andando muito rápido, tão rápido que comecei a me perguntar se a bike aguentaria tanta violência, pois às vezes havia trechos de estrada mais esburacados e eu acabava passando por eles de qualquer jeito, sem reduzir muito a velocidade.

Logo após ter pensado isso, enquanto passava por um destes trechos esburacados, ouvi um estalo metálico bem alto, seguido pelo barulho do pneu traseiro raspando pesadamente contra a bike, freiando-a rapidamente.

Eu tive sorte, pois não foi a bike que havia quebrado, era apenas o parafuso de fixação do bagageiro traseiro que havia arrebentado, de modo que o mesmo inclinou, raspando no pneu e freiando a bike.

Eu tinha comigo algo como dez parafusos de reserva, e em cinco minutos estava na estrada de novo.

A minha sorte estava em ação de novo, pensei, pois a minha frente vi três nuvenzinhas de poeira se aproximando, vindo de Socaire.

Parei a bike, mais ou menos no meio da pista, e comecei a gesticular para que o carro parasse, como sempre fizera antes. O carro nem diminuiu a velocidade.

Desgraçado, pensei. Me preparei para parar o segundo carro, desta vez pegando uma das garrafas de água e fazendo gestos óbvios indicando que eu necessitava de água.

O carro diminuiu de velocidade, mas também não parou.

Desta vez eu xinguei o motorista de algo bem mais pesado que “desgraçado”, e fiz vários gestos obscenos que ele com certeza viu através do espelho retrovisor.

Não conseguia entender porque eles não paravam. Era óbvio que eles entenderam que eu necessitava de água, e eu duvido que eles tenham pensado que eu fosse um ladrão ou algo parecido.

Ainda havia o terceiro carro,o qual me viu dar um verdadeiro show de mímica, mas ainda assim não reduziu a velocidade. Vendo que ele não diminuía, iniciei a segunda parte do show, desta vez composto por gestos menos refinados, destes que todos temos a oportunidade de exercitar de vez em quando no trânsito, mas executados com uma convicção e realismo impressionantes, dignos de um Oscar.

O motorista diminuiu um pouco a velocidade fazendo uma cara de mau, e deu uma freiada brusca depois de haver passado por mim, como se tivesse parado para brigar. Eu não tive nenhuma duvida e corri em direção ao carro, mas o motorista tornou a arrancar, enquanto eu me limitei a fazer a única coisa que podia, iniciar o terceiro ato do meu espetáculo pornográfico, desta vez não usando apenas as mãos, mas sim o corpo inteiro.

Continuei sem entender o porque deste comportamento dos motoristas. A única coisa que deduzi é que eles eram paraguaios pois estavam dirigindo caminhonetes iguais, e no modelo que era mais requisitado por lá.

Continuei a pedalar, e depois de mais alguns quilômetros, encontrei uma placa que indicava, “Socaire- 40 KM”. Bebi um pouco de água para comemorar, afinal era tudo descida, e em duas horas no máximo estaria lá.

Socaire é uma vila empoeirada e minúscula. A estrada passa bem no meio dela. Parei em uma loja e comprei uma lata de salmão e um pouco de maionese. Fiz um enorme almoço na praça da cidade, que parecia abandonada pois não se via ninguém na rua.

Fiquei algumas horas descansando na sombra, e depois prossegui viagem em direção ao Salar de Atacama. Desci por 30 km até a planície aonde se localiza o Salar e depois segui por outra estrada que levava até a Laguna Chaxa, no meio do Salar.

O Salar de Atacama foi uma decepção para mim pois não era tão bonito quanto eu esperava. Depois fiquei sabendo que o motivo por ele não estar tão branco como de costume era a falta de chuvas naquele ano, o que o deixava coberto de poeira marrom. De fato, o Salar de Cauchari, na Argentina, havia me impressionado muito mais.

Já estava anoitecendo e só fui chegar a Laguna Chaxa depois de escuro, tendo percorrido mais 30 km através do Salar.

A Laguna Chaxa faz parte de um Parque Nacional e é muito importante para o ecossistema local pois serve como local de alimentação e nidificação para os flamingos da área.

Próximo à laguna encontrei o guarda parque Armin, que estava em sua casa com três turistas americanos. Eles ficaram bastante surpresos com a minha chegada mas logo estávamos todos conversando animadamente.

Armin me convidou para comer com eles, e fizemos uma macarronada em conjunto. Foi muito bom encontrá-los, e ficamos conversando até tarde da noite.

Na manhã seguinte acordamos bem cedo para observar os flamingos que vem se alimentar na laguna . Incrível que possa haver vida em meio a um ambiente tão hostil. Os flamingos se alimentam de pequenos moluscos encontrados nas águas da laguna. Eles se movem com graça e harmonia, vivendo com tranquilidade no deserto mais árido do mundo.

Ali, observando os flamingos, percebi de repente que a minha viagem chegara ao final. Eu não estava mais sozinho ou isolado no deserto. Estava de novo com pessoas, e cada vez mais próximo à civilização.

Ainda teria que percorrer os últimos 50 km de estrada até San Pedro, mas levaria dois dias para fazê-lo, pois já havíamos combinado que faríamos uma festinha na casa de Armin naquela noite.

É difícil determinar quando uma viagem começa ou termina, e essa definição não é importante e talvez nem seja mesmo possível. Afinal, a vida toda é uma viagem, a única coisa que muda são as pessoas com quem viajamos e os lugares onde estamos.

Em breve estaria no Brasil, viajando de outras formas, e a Patagônia e o Atacama estariam presentes somente na minha memória ou projetados na parede em forma de slides.

Mas a idéia mais importante já estava comigo e eu nunca iria esquecê-la. Devemos lutar para realizar os nossos sonhos. Não importa em que direção eles nos levem, eles são o motivo da nossa existência, e a vida não existe sem eles.

Não há nada de original nesta afirmação, mas ela é absolutamente verdadeira, e se conseguirmos viver de acordo com ela estaremos no caminho certo e tranquilos, cientes de termos conseguido fazer as nossas escolhas.

Passei um dia agradável com Armin e os americanos, e fizemos uma bela festa à noite, regada com muita cerveja e caipirinha.

No dia seguinte segui com os americanos até San Pedro. Eles foram de carona e eu fui pedalando. Ao todo pedalei por volta de 400km no Atacama, e percorri algo como 100km de carona.

Passamos mais um dia juntos em San Pedro, de onde cada um seguiu seu rumo. Eles em direção a Bolívia, e eu de volta ao Brasil.

Aquela viagem havia acabado, e uma outra, que eu ainda não sabia aonde ia me levar, estava começando.

A nova viagem é este livro, e espero que ele possa levar alguém a algum lugar. Talvez sirva de inspiração ou fonte de informação, para que você também pedale seus sonhos.
















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