segunda-feira, 15 de outubro de 2007

7 - Torres del Paine



Na manhã seguinte a primeira coisa que me veio à cabeça foi a truta, mas felizmente eu teria um monte de coisas nas quais pensar e com as quais me distrair. Iria finalmente entrar no parque, começar a caminhar e chegar até as famosas torres, que pareciam dentes de um jacaré gigante de boca aberta.

O Parque Torres del Paine é provavelmente o parque nacional mais famoso na América do Sul, tem uma área de 2420km quadrados, e foi declarado patrimônio da humanidade pela Unesco em 1978. O nome Paine tem suas origens na língua dos índios Mapuche e quer dizer azul claro. Provavelmente a área recebeu esse nome por causa dos inúmeros lagos glaciais de cor azul claro que existem por lá.

O maciço do Paine atinge uma altura de mais de três mil metros e se destaca do relevo circundante, que tem uma altura média de apenas 100 metros. As Torres do Paine são três enormes colunas de granito rosado.

Existe uma trilha que circunda o maciço inteiro, tem 86km de extensão e leva uma média de 8 dias para ser percorrida. Existem caminhadas adicionais que se desviam da trilha principal e fazem com que o tempo de caminhada e a distância possam ser maiores caso se queira explorar o parque mais profundamente.

O parque é bastante visitado por turistas chilenos e do mundo inteiro, e tem vários campings e refúgios ao longo do percurso. Existem até hotéis de luxo dentro do parque, uma infra-estrutura impressionante.

Atravessei a ponte sobre o Rio Grande, que estava bem destruída. Era impossível atravessá-la de carro, ou mesmo pedalando, pois a maioria das tábuas havia caído. No pedaço mais crítico havia somente duas tábuas. Sobre uma coloquei a bike, e eu ia caminhando na outra, empurrando a bike. Não havia condição de pedalar. O vento soprava forte e por isso atravessei bem devagar tomando muito cuidado para não perder o equilíbrio e cair na água.

Comecei a pedalar, com as Torres diretamente à minha frente. Eu estava me dirigindo ao Lago Grey, aonde havia uma guarderia, o local aonde se encontram os guarda parques. O plano era deixar a bike lá, colocar a bagagem na mochila, e fazer uma caminhada até o Glaciar e Lago Pingo.

A distância até a guarderia era de apenas 25km, mas eu não imaginava quanto esforço ia me custar para chegar até lá. O grande problema foi o vento, que começou a soprar forte já pela manhã. Ele vinha do lado esquerdo e eu tinha dificuldades para pedalar em linha reta. A estrada estava em más condições e a melhor parte para se pedalar era o extremo direito dela. Era uma pedalada delicada pois o vento ameaçava me empurrar para fora da estrada. Fui me acostumando e até aumentei um pouco a velocidade pedalando o mais rápido que podia. Foi uma imprudência, e logo paguei por ela. Uma rajada mais forte me empurrou um pouquinho para a direita e quando dei por mim estava voando, mais precisamente aterrissando de lado no barranco que havia ao lado da estrada, e rolando igual a um jogador de futebol quando quer encenar uma falta. Tudo foi muito rápido, mas felizmente não me machuquei. A bike também estava inteira mas a parte esquerda do bagageiro dianteiro havia entortado para fora. Desentortei o quanto pude com a mão, mas com isso o metal deu uma rachadinha, que comprometeu a resistência do bagageiro. Teria de encontrar algum lugar para soldá-lo. A minha sorte é que ele era de metal, que é um material fácil de soldar, e não de alumínio para o qual necessitaria de uma solda especial. De qualquer forma eu precisaria de sorte para encontrar uma máquina de solda, talvez em um dos hotéis ou com os guarda parques.

Deixei o problema para depois, por hoje daria para chegar até a guarderia sem complicações. Faltavam então 18km, só que a estrada virava para a esquerda e eu comecei a ter o vento bem de frente. Parecia até que o vento estava aumentando, eu tinha que pedalar em primeira marcha, fazendo a ridícula velocidade de 6km por hora! Daquele jeito eu levaria três horas para chegar até a guarderia!

Não havia nada a fazer, a não ser pedalar. O vento continuou aumentando e depois de mais ou menos uma hora ficou difícil pedalar. Eu estava indo tão devagar que se tornava complicado manter o equilíbrio em cima da bike, e acabei levando outro tombo.

A roda da frente oferecia bastante resistência ao vento, e se eu a desalinhasse um pouco, o vento a dobrava com violência para o lado. Como a bike estava carregada e eu estava andando bem devagar, era difícil evitar cair. A solução foi andar a pé, empurrando a bike, em plena planicie!

O vento já estava muito forte, mas ia aumentar ainda mais. Eu estava finalmente conhecendo os famosos super ventos da Patagônia. E já que eles demoraram para aparecer, estavam soprando com vontade. Lá estava a natureza com outro de seus espetáculos surpreendentes. As Torres continuavam ali ao lado, lindas, impassíveis, mas as nuvens sofriam com a violência do vento. Elas eram espremidas contra as Torres, e forçadas a subir as suas paredes. Quando finalmente superavam os cumes, seguiam sua louca corrida. Parecia até que as Torres eram chaminés de um trem a vapor, deixando um rastro de fumaça inclinado no céu.

Vendo isso eu entendi o motivo de o vento estar tão forte. Eu estava em um vale, entre o Maciço das Torres e uma outra montanha. O vale funcionava como um funil, multiplicando a força do vento. O vale se estreitava ainda mais lá na frente e a estrada deixava de ser plana. Havia uma subida, não muito íngreme, mas com uns dois quilômetros de comprimento.

Mas eu ainda não tinha chegado lá. O vento agora estava levantando nuvens de poeira e pequenas pedras quando soprava mais forte. Eu podia ver as rajadas se aproximando pois elas levantavam uma verdadeira nuvem de poeira da estrada. Eu me inclinava para a frente, freiava a bike, e fechava os olhos até as rajadas passarem.

Não havia nenhum lugar onde se esconder do vento, tudo era absolutamente plano, teria de continuar de qualquer maneira. Na subida a coisa piorou ainda mais, era difícil subir andando, o melhor era correr pois aproveitava melhor a força da inércia. Eu aguentava correr algo como vinte metros e tinha que parar para descansar. Foi em uma destas paradas para descansar que me distrai e desalinhei um pouco a roda da frente em relação ao vento. Foi o suficiente para que a bike fosse jogada para o chão de novo. Eu tentei evitar que ela caísse e acabei indo para o chão junto! Era o cúmulo, cair de bike estando em pé, no chão!

Com muito esforço, acabei chegando ao topo da subida aonde encontrei uma pedra, atrás da qual dei uma parada para descansar. Dali para a frente foi mais fácil pois era descida, e eu desci com todo cuidado pois já havia levado tombos suficientes naquele dia. Antes de chegar a guarderia, ainda encontrei com um casal de ciclistas ingleses que estavam indo na direção contrária. Eles estavam se divertindo com o vento pelas costas e nem precisavam pedalar.

O guarda parque me recebeu muito bem e me informou que o vento havia atingido 100km por hora nas rajadas. Deixei a bike na guarderia e fui até as margens do Lago Grey, aonde havia vários icebergs encalhados na areia!

Esses icebergs haviam se desprendido do Glaciar Grey, a mais ou menos 15km de distância e foram arrastados pelo vento até encalhar na areia! Eu estava entrando em contato com um outro universo, aonde as dimensões eram enormes e o tamanho do Homem insignificante. O passar do tempo também não fazia muita diferença pois aqueles glaciares já estavam ali muito antes do homem ter dado os primeiros passos na Terra.

Já que estamos falando de glaciares e icebergs, convém explicar um pouco sobre como funciona a mecânica das águas nesta parte da Patagônia.

Um glaciar pode ser definido como um “rio” de neve e gelo. Ocorre muita precipitação de neve nas montanhas. Essa neve vai se acumulando e precisa escorrer para o lado mais baixo da montanha, exatamente como faz a água. A diferença e que a neve é solida e “escorre” muito lentamente, tão lentamente que acaba se transformando em uma espécie de gelo, devido as variações de temperatura que sofre ao longo do dia e a compactação ocorrida com a pressão do seu próprio peso. O gelo “escorre” ainda mais lentamente que a neve, rachando na medida em que se move, e cada glaciar tem a sua velocidade própria de movimento, que nunca passa de centímetros por hora.

Os glaciares ocupam áreas enormes, cobrindo vales inteiros entre montanhas. O gelo dos glaciares está sempre derretendo, e por cima e por baixo deles existem inúmeros rios, que acabam formando lagos. Portanto, aonde há um glaciar, há sempre um lago, e também um rio, por onde corre o excesso de água do lago. É por isso que existem glaciares, lagos e rios com o mesmo nome, todos relacionados entre si.

Uma grande particularidade dos glaciares na Patagônia é que muitos deles não se originam em simples montanhas e sim no Campo de Gelo Sul, que é a área de maior concentração de geleiras fora dos Pólos, com uma área de aproximadamente 14.000 quilômetros quadrados. O Campo de Gelo Sul é o que resta da última era glacial na América do Sul. Há também o Campo de Gelo Norte, que se localiza um pouco ao norte do Campo de Gelo Sul. É bem menor, mas ainda assim tem uma área de 4500 quilômetros quadrados.

Aquele estava sendo um dia cheio de emoções e ainda não tinha terminado. Fiquei um bom tempo nas margens do Lago Grey olhando os icebergs e depois voltei a guarderia para me preparar para a caminhada.

O guarda parque era muito simpático e acostumado a ter ciclistas deixando suas bikes com ele. Peguei minha mochila de caminhada, que estava dobrada dentro de um dos alforjes dianteiros e a montei, colocando nela a sua armação interna que eu carregava junto com a barraca. Depois de montada a mochila, separei as roupas, equipamentos e comida que ia necessitar e organizei tudo. Estava levando comida suficiente para 4 dias, e a mochila estava pesando por volta de 12kg.

Neste primeiro dia iria somente até o Refúgio Pingo a uns 40 minutos de distância e dormiria lá. A caminhada era curta mas foi gostosa, pela margem do Rio Pingo. Era outro estilo de viagem, que permitia um contato mais próximo à natureza ainda do que quando estava de bike.

O refúgio, que estava muito mal conservado, estava lotado com argentinos, chilenos e europeus. Havia várias barracas em volta do refúgio e montei a minha perto das outras, tendo um pouco de dificuldade com o vento, que já tinha enfraquecido, mas continuava bem forte. Preparei o jantar e voei para a cama. Finalmente o dia chegara ao fim. Ainda demorei a pegar no sono pois o vento sacudia a barraca que estalava e fazia barulhos estranhos.

No dia seguinte o vento continuava forte e ameaçava chover. Comecei a me preparar, e com a minha tradicional lentidão matinal estava pronto para sair às 11:30.

Iniciei a caminhada sozinho, a trilha seguia o Rio Pingo por um certo tempo, depois entrava em uma floresta de Lenga e começava a subir uma montanha. A trilha era bem bonita e dava para ver o topo de montanhas nevadas por entre as copas das árvores.

Depois de 2 horas de caminhada cheguei em uma cachoeira e parei para almoçar. A cachoeira não era muito bonita e por isso continuei em seguida, desta vez acompanhado por um grupo de chilenos que me alcançaram enquanto eu almoçava. Eram 5 amigos que estavam pela primeira vez no Parque, fazendo a caminhada até o Glaciar Pingo para depois percorrerem o circuito em volta do Maciço do Paine.

O terreno até o refúgio não era muito acidentado mas havia começado a chover e havia muita água na trilha. Isso atrapalhou os chilenos que não tinham sapatos a prova d’água e precisavam sempre buscar um caminho mais seco para prosseguir. Eu os deixei para trás e logo cheguei ao refúgio.

O refúgio Zapata estava ainda mais mal cuidado que o refúgio Pingo. As paredes eram totalmente pretas devido à fumaça que escapava da “salamandra”, que é um tipo de fogão à lenha. O local estava infestado de “ratones” e por isso toda a comida tinha que ser pendurada em arames no teto. Não havia ninguém dormindo lá mas preferi montar a minha barraca do lado de fora.

Algum tempo depois os chilenos chegaram e passamos o resto da tarde no refúgio secando as roupas que penduramos sobre a salamandra, que não parava de soltar fumaça e defumar a todos no local.

No dia seguinte criei coragem para tomar um banho de rio. Desde que saíra de Natales não tive nenhuma chance de tomar banho e nem teria tão cedo. O jeito foi encarar o rio gelado mesmo.

A água corre muito rápido e não dá para entrar mais fundo que a altura das coxas pois a água acaba te derrubando. Entrei até a altura dos joelhos e deitei rapidamente na água. Era super frio e saí rapidamente pois além do frio, quando se deita na água a correnteza começa a te arrastar imediatamente. Sai do rio, me ensaboei tremendo de frio e mergulhei de novo. Sorte que com a força da correnteza o sabão vai embora rapidamente. Me sequei no vento mesmo pois a minha toalha era bem pequena e não dava para me secar inteiro com ela. Engraçado como o vento funcionava bem como secador. Fora da água estava tão menos frio que dentro, que eu me sentia quase confortável!

Bom, até que não foi tão ruim. Acabou rápido, e eu já estava aquecido de novo, e limpo. Voltei ao refúgio, e junto com os chilenos, fui até o lago e glaciar Pingo.

Antes de chegar ao nosso destino, teríamos que atravessar a pé o rio Pingo pois a ponte que passava sobre ele havia sido destruída na semana anterior por uma enchente. Chegando ao rio procuramos por um local adequado para atravessar, e gastamos algo como duas horas para encontrá-lo pois todos os lugares pareciam fundos demais.

Finalmente escolhemos fazer a travessia em um lugar onde o rio era bem largo e parecia ser menos fundo. O nosso cobaia para a travessia foi o Maurício pois ele era o único que tinha trazido um par de sandálias para atravessar o rio com mais facilidade. Os outros teriam que atravessar descalços mesmo. A travessia não foi difícil, o rio estava na altura do início da coxa e usamos bastões de pau para ajudar a manter o equilíbro. O problema maior era a água fria. Chegava a doer de tanto frio, mas antes de chegar ao outro lado, os pés já estavam adormecidos e ninguém sentia mais frio. As pedras do fundo também atrapalhavam bastante e tínhamos que ir devagar para não machucar os pés. Chegando no outro lado paramos para secar os pés e conversar, e vimos dois turistas que vinham atrás de nós e estavam chegando no rio. Eram o Cris e a Jeanine!

Foi legal reencontrá-los, eles haviam me alcançado rápido e haviam tido os mesmos problemas com o super vento. Fomos todos juntos até o Lago Pingo, mas no caminho começou a chover de novo, e quando chegamos no lago não havia muita coisa para ver com o tempo encoberto.

Resolvemos voltar pois todos estavam molhados e cansados. Quando estávamos andando à uma meia hora, o tempo abriu de repente, confirmando a famosa Lei de Murphy.

Passamos mais uma tarde comendo, defumando as nossas roupas e a nós mesmos. Pelo menos estávamos em um grupo grande e o tempo passou rápido conversando.

No dia seguinte o tempo continuava ruim, choveu até o meio dia e só então comecei a caminhada para voltar a guarderia. Voltei sozinho pois o Cris e a Jeanine já tinham ido e os chilenos conseguiam ser mais enrolados que eu para se arrumar. Nos encontramos todos no refúgio Zapata pois era o último refúgio grátis naquela área do parque.

É possível ficar no Parque gastando pouquíssimo dinheiro, mas é necessário um pouco de planejamento pois não são todos os refúgios e campings que são grátis. Foi por isso que paramos todos no refúgio Zapata, para poder ter o dia seguinte inteiro para chegar ao próximo refúgio grátis.

No dia seguinte eu e os suíços saímos cedo pois pretendíamos pegar uma lancha que partia da guarderia Grey, atravessava o lago e levava até o glaciar Grey. O nosso plano era iniciar a caminhada lá. Optamos por não fazer o circuito completo pois não tínhamos tempo e ouvíramos dizer que a parte de trás do circuito não era tão interessante quanto a parte da frente. Entretanto, não pudemos fazer o planejado pois só era permitido comprar passagem de ida e volta para a lancha, e não tínhamos tanto dinheiro(30 dólares ida e volta).

Ficamos bem aborrecidos pois teríamos que dar uma volta enorme para só então chegar ao glaciar. Esse problema seria facilmente contornado se houvesse uma ponte para atravessar o Rio Grey. Por enquanto os turistas tem que pagar por travessias de barco até que a administração do Parque resolva melhorar um pouco a estrutura existente. Existe um projeto que envolve a construção de algumas pontes e campings, mas vai levar algum tempo até que seja posto em execução.

Mudamos os nossos planos e resolvemos pedalar até o refúgio Pudeto, que era grátis, e de lá poderíamos pegar uma lancha pagando passagem só de ida. Pedalei com os suíços até a administração do Parque e fiquei por lá procurando uma máquina de soldar para arrumar o meu bagageiro. Dei sorte pois havia uma com os militares, que estavam consertando as estradas do parque e tinham máquinas pesadas. Em cinco minutos já tinha arrumado tudo, e mais uma vez fiquei feliz por ter um bagageiro de ferro, que é fácil de soldar.

Reencontrei os suíços no refúgio e passamos a tarde comendo, que é o passatempo predileto do ciclista, e arrumando as mochilas para o dia seguinte. Deixamos as bikes em uma guarderia perto de Pudeto e no dia seguinte pegamos a lancha até o camping Pehoe.

A travessia leva uma hora e custa 12 dólares. O camping Pehoe tem uma localização estratégica e muitas pessoas passam a noite lá. Pode-se acampar por 4 dólares, com direito a banheiro com água fria para banho, ou dormir no refúgio, pagando 15 dólares, com direito a banheiro e água quente.

Optei por acampar ali mesmo. Cris e Jeanine foram embora em direção ao glaciar Grey, aonde iriam acampar. Eu acabei indo até o Grey também mas não levei a minha mochila, pois iria voltar para dormir em Pehoe. Foi uma boa idéia, de Pehoe até o Grey eram três horas de caminhada, com mais três horas para a volta.

Acabei levando menos tempo que isso pois sem a mochila ia mais rápido que os outros. O glaciar Grey é realmente impressionante. Um corredor de gelo imenso que desce do Campo de Gelo Sul e termina no lago Grey, aonde a parede de gelo, de 40m de altura, se rompe e enormes blocos de gelo caem na água aonde flutuam e vão derretendo aos poucos.

A trilha até o Glaciar estava cheia de gente. Encontrei dois grupos de brasileiros e também um enorme grupo de argentinos, que estavam fazendo a sua viagem de formatura no circuito.

Achei bem original, eram garotos e garotas com uma média de 15 anos. Estavam em um grupo de cem pessoas, acompanhados por 6 professores. Entretanto, durante a caminhada cada um seguia seu próprio ritmo e o grupo se dispersava, para se encontrar somente no final do dia, quando tinham que montar as barracas, cozinhar, lavar, etc.

As trilhas no Parque são muito bem marcadas e não há risco de se perder. O terreno também não é demasiadamente acidentado. Existem muitas subidas íngremes, mas não há nenhum trecho onde seja perigoso cair e se machucar. É pesado carregar uma mochila por várias horas, durante dias seguidos, mas a grande maioria do pessoal estava se divertindo muito. Havia aqueles que estavam sofrendo para carregar as mochilas, mas o grupo estava se movendo lentamente e havia tempo de sobra para fazer as caminhadas.

Cheguei de volta ao camping ao anoitecer e descobri que tinha vizinhos, os professores que acompanhavam o grupo de argentinos. Eles eram, como eu, professores de inglês. A escola era bilíngüe. Para minha surpresa eles estavam tranquilos, não havia problemas com o grupo, todos cozinhavam sua própria comida ou jantavam no refúgio. Eles me falaram que o maior problema que tinham era para acordar um ou dois dorminhocos pela manhã.


No dia seguinte caminhei até o Camping Italiano, a duas horas e meia de distância do Camping Pehoe. Lá reencontrei os suíços, e juntos caminhamos até o Campamento Britânico. Foram mais duas horas e meia de subida forte. Estávamos entrando no Vale Francês, que para mim foi o lugar mais interessante e bonito no parque.

Na saída do Camping Italiano podíamos ver a nossa esquerda o Cerro Paine Grande, com 3050 metros de altura. A montanha era coberta pelo Glaciar Francês, que se equilibrava precariamente nas encostas íngremes da montanha. De vez em quando podíamos ouvir um estrondo, como um trovão. Eram pedaços de gelo se rompendo, e caindo montanha abaixo, batendo nas pedras, formando uma cachoeira de gelo e neve. Era um espetáculo maravilhoso, mais uma demonstração de força e beleza da natureza .

À nossa direita podíamos ver os Cuernos del Paine, que como o nome indica, se assemelham à chifres. Os Cuernos são formados por blocos de granito marrom claro cobertos por uma camada de cascalho preto em forma de cone, daí a semelhança com chifres.

Na medida em que caminhávamos víamos outras montanhas. Ao lado dos Cuernos. Podíamos ver o Cerro Máscara, Hoja e também o Espada, todos eles com formas belas e estranhas.

Atravessamos uma bela floresta de Lenga e chegamos ao Campamento Britânico, em meio as árvores. Não há nenhuma infraestrutura nos campamentos, que são apenas áreas aonde acampou-se muito ao longo dos anos e por isso não há vegetação rasteira. Não há banheiro ou latas de lixo, e o próprio campista tem que levar o seu lixo de volta ou então queimá-lo. Para obter água não há problemas pois os campamentos se localizam todos às margens de rios de águas limpíssimas.

A maior parte dos turistas não acampa no Campamento Britânico. O lugar estava vazio, com apenas uma barraca que pertencia a escaladores que estavam em alguma montanha na área. Geralmente as pessoas acampam no Camping Italiano e sobem somente para passar meio dia na parte mais alta do vale, o que é um erro, pois não há tempo suficiente para se explorar o vale direito.

No dia seguinte eu, Cris e Jeanine caminhamos até o miradouro, 30 minutos ao norte do campamento. De lá podíamos ter uma visão mais ampla do vale. O Vale Francês é totalmente fechado no lado norte. Havíamos entrado nele pelo lado sul e seguido um rio entre os Cuernos e o Cerro Paine Grande. O lado norte do vale se fecha em uma espécie de círculo, e o miradouro se localiza mais ou menos no centro deste círculo. Estávamos totalmente cercados por montanhas, uma mais estranha e bonita que a outra. Ficamos parados ali por um bom tempo, apenas admirando o visual. De vez em quando cascatas de gelo despencavam pelas encostas do Cerro Paine Grande, rugindo como trovões.

Em direção noroeste a partir do miradouro, é possível subir por uma espécie de vale entre os Cerros Espada e Fortaleza. Não há trilha, mas havíamos conversado com outras pessoas e sabíamos que era possível subir por ali. A orientação era bastante simples, só havia um caminho a seguir, e se a visibilidade se mantivesse boa poderíamos encontrar nosso caminho para entrar e sair deste vale lateral sem problemas.

Jeanine não quis ir pois estava cansada da subida do dia anterior, fomos apenas eu e o Cris. O caminho a seguir era realmente bastante óbvio mas deixei o Cris ir na frente, afinal de contas além de suíço ele era instrutor de montanhismo, e sabia tudo sobre montanhas.

A subida se tornava cada vez mais íngreme. Estávamos caminhando sobre pedras, acima da altura máxima atingida pela vegetação. Havia pedras de todos os tamanhos, e caminhávamos sobre as maiores pois assim havia menos risco de que elas virassem e torcêssemos um pé.

É muito curioso como é fácil perder a noção de distância nas montanhas. Como elas são enormes, aparentam sempre estar logo ali. Nós continuávamos a caminhar e a distância parecia não diminuir. Depois de um certo tempo chegamos ao local que achávamos ser o fim do vale, mas descobrimos que não tínhamos percorrido nem a metade da distância. Paramos para descansar e comer um chocolate. Também colocamos roupas mais quentes pois o vento havia começado a soprar forte.

O céu ainda estava azul, mas não podíamos ter uma idéia real sobre como o tempo iria se comportar pois estávamos fechados no vale e não podíamos ver se havia nuvens se aproximando. Continuamos a nossa caminhada, agora já estávamos entre o Cerro Espada e o Fortaleza, a uma altitude de 1700 metros. Às vezes o chão estava coberto de neve, neve esta aonde eu tratei logo de pisar em cima, as minhas primeiras pegadas na neve na Patagônia!

O nosso objetivo era chegar ao fim deste vale pois havíamos visto no mapa que ele se interligava a outro vale, o Vale do Silêncio, e queríamos chegar neste ponto, aonde há um grande abismo, para dar uma olhada.

Havia começado a nevar, uma neve bem fininha, como se fosse uma garoa, mas estávamos quase chegando e não desanimamos. Acabamos não podendo chegar ao local onde os dois vales se encontram, pois havia um glaciar cobrindo os últimos 500 metros do caminho.

Os glaciares são como um campo de gelo e neve que se movimenta, muito lentamente, mas se movimenta. Ao se movimentar o gelo racha,e por isso a superfície dos glaciares é toda coberta de fendas, que às vezes são bem profundas. Cris me explicou que seria muito perigoso continuar pois muitas fendas estavam cobertas pela neve, e podíamos cair numa delas e não teríamos como sair, pois não tínhamos nenhum equipamento para isso.

Que ironia, ter chegado até ali e ter que voltar. O glaciar era bonito, com a coloração tipicamente azulada deste tipo de gelo, e toda a paisagem tinha um aspecto meio lúgubre, pois com a neve a visibilidade havia reduzido bastante, e não enxergávamos além de 700 metros.

Ficamos alguns minutos admirando o cenário mas logo tivemos que retornar pois as nossas roupas não eram eficientes contra a água, e estava nevando mais forte, com bastante vento. Felizmente, apesar da visibilidade estar baixa, não tivemos problemas para encontrar o caminho de volta.

A descida foi bem mais rápida que a subida mas cansou bastante. Tínhamos que descer rápido pois estávamos com frio, mas também tínhamos que tomar cuidado para não escorregar ou torcer um pé.

De volta ao acampamento, conseguimos acender uma fogueira para nos aquecer, e almoçamos ao redor dela.

Havíamos combinado de descer até Pehoe à tarde e logo após o almoço o Cris e a Jeanine desceram, mas eu fiquei descansando e esperando o tempo melhorar um pouco pois continuava a garoar.

Acabei tendo que descer com garoa mesmo pois estava ficando tarde e eu tinha pela frente aproximadamente 4 horas de caminhada até Pehoe. Isso somado às quatro horas que caminhei com o Cris de manhã, totalizariam 8 horas. Acabei me arrependendo depois por não ter ficado mais um dia explorando outras partes do vale.

A descida até Pehoe foi sem incidentes. Tive a oportunidade de experimentar caminhar com a minha capa amarela, que provou ser excessivamente quente. Cheguei em Pehoe ao anoitecer, estava chovendo forte e ventando muito. Procurei em vão pelos suíços. Queria dormir na barraca deles pois estava complicado montar a barraca sem ficar totalmente ensopado. Não os encontrei e estava totalmente escuro.

Encontrei com o rapaz que tomava conta do camping e lhe contei a minha história. Ele me deixou dormir de graça em uma das barracas que eles tinham para alugar. Pude me jogar dentro do meu saco de dormir e desmaiar embalado pelo barulho da chuva.

No dia seguinte procurei os suíços de manhã mas não os encontrei, e acabei deixando o camping às 11:30, para caminhar 5 horas até a administração do Parque. Havia bastante vento mas eu o tinha a favor, o que tornou até divertida esta caminhada que passa por uma parte do parque que não é muito bonita. A única coisa que me chamou a atenção nesta caminhada foram umas nuvens que haviam “encalhado” sobre as Torres. Havia uma nuvem gigante em forma de cegonha, com longas asas e pescoço. Apesar do vento que vinha das Torres em minha direção, a nuvem permanecia parada no mesmo lugar. Fiquei observando-a por um bom tempo até que finalmente ela começou a girar sobre si mesma e se desintegrar. Aquela não era a primeira vez que eu via nuvens estranhas no parque. O que ocorre é que as nuvens se chocam contra o maciço das Torres, que atua como barreira para elas. As nuvens são pressionadas a subir pelo vento e com isso assumem formas estranhíssimas e podem ficar pairando sobre as montanhas por um longo tempo.

Chegando na administração peguei uma carona até o Refúgio Pudeto, aonde reencontrei os suíços. Todos os dias eu me separava e reunia com eles, isso porque eles eram sempre mais rápidos para se organizar e gostavam de começar o dia cedo. Eu era mais despreocupado e lento, e costumava deixar o acampamento para pedalar ou caminhar sempre por volta das 11:00 da manhã. Como eu e eles estávamos fazendo o mesmo trajeto, nos reencontrávamos fatalmente, sempre nos surpreendendo como isso ocorria tão rápido e facilmente.

Recuperamos as nossas bikes que haviam ficado com o guarda parque de Pudeto e nos preparamos para sair na manhã seguinte com destino à Hosteria las Torres, aonde iniciaríamos a nossa última caminhada no parque, passando pelos campamentos chileno, das torres e chegando até o Campamento Japonês, de onde pode se continuar até o Vale do Silêncio.

Para variar um pouco, os suíços me deixaram para trás de manhã enquanto eu conversava com as outras pessoas que estavam no refúgio e arrumava a bike. O vento estava muito forte e a favor, foi uma delícia pedalar até a hosteria, nas subidas parecia que havia alguém empurrando a bike.

Chegando na hosteria, encontrei o Cris e a Jeanine começando a caminhar. Eu ainda almocei, descansei e arrumei a mochila antes de sair.

A trilha subia por uma encosta bastante íngreme, e o vento estava muito forte, dificultando bastante a caminhada. Depois de uma hora a subida diminuiu de intensidade e o vento atrapalhava menos. Em uma hora e vinte minutos cheguei ao Campamento Chileno, e com mais quarenta e cinco minutos cheguei ao campamento de las Torres, aonde encontrei os suíços. Eles já haviam montado a barraca e estavam cozinhando uma sopinha para espantar o frio. Jeanine já havia se escondido em seu saco de dormir e Cris estava fora, cuidando da sopa, tremendo de frio, pois eles não haviam trazido, naquela caminhada, roupas que os aquecessem o suficiente quando estavam parados. Eles planejavam ficar dentro dos sacos de dormir se ficasse muito frio. Esse problema só ocorreria quando estivessem parados pois ao caminhar o corpo gera calor suficiente para que a pessoa se aqueça com roupas mais leves.

Os suíços tinham mochilas bem pequenas e não podiam carregar muito equipamento. Por isso eles sempre reduziam o equipamento deles ao mínimo quando fazíamos caminhadas, e me criticavam por carregar coisas “desnecessárias”. Eu tinha uma blusa de lã extra e por isso não passei frio neste dia.

Depois de descansar um pouco, deixei Cris e Jeanine se aquecendo na barraca deles. Eles tinham esta vantagem, podiam juntar seus sacos de dormir e aquecer um ao outro. Continuei até o Campamento Japonês, pois estava ansioso por conhecer o Vale do Silêncio. Eu adorava aqueles nomes dramáticos e sugestivos, sempre geravam uma expectativa enorme e isso aumentava a emoção de chegar a esses lugares.

O Campamento Japonês não é muito frequentado, e serve de acampamento base para expedições de Andinistas que estejam tentando escalar as Torres. Havia algo como 15 barracas no acampamento, todas vazias pois o pessoal estava acampado o mais próximo possível das montanhas.

Tinha a impressão de estar em um acampamento fantasma, ou que algo houvesse acontecido com as pessoas que deviam estar ali. Havia pegadas em volta das barracas, roupas secando em varais improvisados, louça sem lavar na beira do rio, mas ninguém por perto. Várias barracas haviam recebido extensões improvisadas com pedaços de lona ou tetos de barraca velhos, e o acampamento todo tinha o aspecto de uma espécie de campo de refugiados. Me resignei a passar uma noite sem conversar com ninguém e logo me recolhi para dormir.

Na manhã seguinte entrei no famoso Vale do Silêncio, que como esperava, não tinha nada de silencioso. No momento em que acabei de contornar uma montanha que marcava a entrada do Vale, dei de cara com um vento fortíssimo, que soprava no sentido contrário ao que eu tinha que caminhar. Continuei subindo, pelo menos a subida não era muito íngreme. O visual não era muito especial, o Vale Francês era mais bonito. O especial acabou ficando por conta do tempo mesmo. O vento não parava de aumentar e logo começou a cair aquela “neve garoa” de novo, me obrigando a parar atrás de uma pedra para colocar a minha jaqueta.

Logo em seguida encontrei com um inglês que estava descendo ao Campamento Japonês para passar um dia mais confortável, pois não haveria escalada com um tempo péssimo como aquele. Ele me explicou aonde era o acampamento dos brasileiros na montanha.

Eu já sabia que havia escaladores brasileiros lá em cima, e inclusive estava levando um pacote de sopa de presente para eles. Eu não os conhecia mas ia visitá-los de qualquer maneira.

Havia várias expedições acampadas no Vale, todas instaladas em barracas na neve, bastante expostas ao vento. Elas pareciam incrivelmente pequenas para suportar aquele vento. Eu tinha que caminhar abaixado para poder manter o equilíbrio e estava usando óculos escuros para poder manter os olhos abertos, pois já estava nevando mais pesado, e o vento estava extremamente forte.

Finalmente cheguei ao acampamento dos brasileiros, que aliás podia ser chamado de “palácio” em comparação com os outros acampamentos. Eles estavam em uma espécie de caverna que foi aproveitada como abrigo. A caverna era formada por uma enorme pedra que estava apoiada sobre uma pedra menor, deixando um grande espaço sob a pedra grande. Havia vãos entre as pedras mas eles tinham sido tampados com pedras menores, que eram cobertas ainda com pedaços de uma lona plástica, que fazia as vezes de porta também .

O espaço interno era bastante razoável, algo como 4 metros de comprimento por 3 de largura, e dava até para ficar em pé no meio. Realmente um ótimo abrigo, muito melhor que qualquer barraca. A caverna havia sido montada por alguma expedição anterior mas todos que acampavam nela contribuíam para a sua manutenção. Os brasileiros estavam acampando nela pois foram os primeiros a chegar no local naquela temporada.

Sérgio e Luís ficaram surpresos em me ver, afinal não é todo dia que se recebe a visita de um brasileiro desconhecido chegando no meio de uma tempestade.

Sérgio era do Rio de Janeiro e Luís de Curitiba, e eles estavam tentando escalar uma das Torres do Paine. Eles estavam acampados na caverna há 24 dias mas ainda não haviam tido uma boa oportunidade para tentar escalar a montanha. O tempo esteve péssimo durante o mês inteiro e somente uma expedição havia conseguido atingir o cume de uma das Torres.

Sérgio e Luís haviam conseguido chegar somente à base da montanha e deixado alguns equipamentos esperando por eles para quando fossem tentar a escalada. Eles me contaram que o problema maior para se escalar na Patagônia é a impetuosidade e imprevisibilidade do clima.

A pedra em si não é extremamente difícil de se escalar, mas o clima frequentemente muda radicalmente e de uma maneira muito rápida, de forma que pode-se começar a escalar com o clima em condições ideais e no meio da escalada ser apanhado por ventos fortíssimos que muitas vezes obrigam o escalador a ficar parado na montanha, sem poder subir ou descer. Depois de algumas horas nestas condições a pessoa pode começar a congelar e se as condições não permitirem a descida a pessoa pode acabar morrendo congelada sem poder fazer nada para se salvar.

Parecia ser uma morte horrível, e eles me contaram que todos os anos acontecem acidentes naquelas montanhas. Naquele verão o único acidente havia ocorrido com um suíço que perdeu o dedinho de uma das mãos por congelamento.

Ficamos conversando por um bom tempo sobre escaladas e sobre a minha viagem também , e tomamos uma sopa para nos aquecer. Incrível como estava frio. Durante a caminhada eu não havia sentido nada de frio mas dentro da caverna precisei colocar todas as roupas que tinha comigo e mesmo assim não foi suficiente. Acabei resolvendo voltar para a minha barraca aonde estaria mais quente.

Deixei Sérgio e Luís na caverna, eles estavam planejando esperar mais alguns dias por um tempo melhor e se não houvesse melhora iriam escalar algo mais fácil no Vale Francês, deixando as Torres para uma outra oportunidade.

Passei mais uma noite no Campamento Japonês, desta vez acompanhado por dois escaladores canadenses. Esta foi a primeira vez que acampei duas vezes no mesmo local.

No dia seguinte desci até a Hosteria las Torres, aonde havia um camping, e tomei um delicioso banho quente. Faziam oito dias desde que eu havia tomado aquele banho gelado no rio. Eu não tive coragem para repetir a dose, por isso fiquei tanto tempo sem banho, estabelecendo um recorde que ainda ia ser quebrado durante a viagem!

Recuperei a minha bike e imediatamente me dirigi até a saída do parque. Estava cansado das caminhadas e louco para pedalar de novo. O roteiro dali para a frente prometia muitas emoções pois eu ia pegar uma trilha de cavalos e seguir por ela até a Argentina, entrando no pais por um caminho utilizado somente por pessoas que conheciam o local, ou então trekkers e ciclistas.

Essa era outra das descobertas do irmão do Cris, que havia feito aquele roteiro alguns anos antes. Era mais um privilégio de ciclistas, poder seguir um caminho por onde não passa praticamente ninguém. A vantagem era de novo economizar quilômetros, desta vez eram 150 quilômetros a menos do que a estrada normal, e ainda por cima passando por uma área muito pouco visitada, uma tentação irresistível.

Apesar da expectativa e de estar feliz por estar na estrada de novo, me senti um pouco deprimido nesta tarde. Eu amaldiçoava a viagem e a mim mesmo nas subidas, estava sem paciência para fazer força. Mas depois das subidas sempre vinham as descidas e o meu bom humor voltava na hora.

Continuei desta maneira até ouvir um ruído leve, mas desagradável. Era o ruído de um raio da roda arrebentando. Parei para ver de que lado o raio havia quebrado e, lei de Murphy em ação, era do lado direito, o lado para o qual eu necessitava aquele maldito Hyper-cracker que eu não tinha.

Não pude fazer nada a não ser me revoltar e continuar a pedalar até a Laguna Azul, rezando para conseguir improvisar alguma maneira de consertar a roda, pois senão teria que voltar e seguir pela estrada normal.

A Laguna Azul me surpreendeu com sua beleza, e havia um refúgio grátis bem na margem do lago, muito bonito e tranquilo. Antes de ir ao refúgio parei na casa do guarda parque para perguntar se ele tinha ferramentas. Eu ia precisar de uma morsa para desmontar a roda traseira.

O guarda parque não tinha nenhum tipo de ferramenta, mas me disse que havia um casal de ciclistas dormindo no refúgio, e que talvez eles pudessem me ajudar.

Não acreditei quando os vi, eram o Cris e a Jeanine! Foi muito legal revê-los pois eu achava que havíamos nos separado definitivamente.

Eles haviam pedalado até a Laguna Azul mas estavam indecisos em relação a continuar pela trilha de cavalos, pois não sabíamos direito como seria o caminho até a Argentina. Segundo o irmão do Cris era “fácil”, o único problema seria atravessar um rio sem ponte carregando a bike. Haveria também um trecho sem trilha alguma, mas neste trecho não havia mato, era tudo pasto, fácil para pedalar ou empurrar a bike.

Jeanine me disse que conhecia bem o irmão do Cris, e o que era “fácil” para ele muitas vezes era impraticável para outras pessoas, e por isso ela preferia seguir pela estrada normal. Cris também queria prosseguir pela trilha alternativa, mas acabou cedendo e resolveu seguir com Jeanine, de maneira que eu iria partir bem cedo na manhã seguinte, sozinho.

Já era noite, e conversávamos tudo isso enquanto eu arrumava os raios da roda. Eu já estava craque em trocar raios e tive uma grande sorte de encontrar o Cris com o seu Hyper-cracker no refúgio. Os raios foram o único problema que tive com a bike na viagem. Isso foi devido à alguma pancada sofrida pela roda no transporte, que fez com que o aro entortasse ligeiramente, o que por sua vez fazia com que alguns raios ficassem mais tencionados que outros, e assim propensos a se romperem.

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