segunda-feira, 15 de outubro de 2007

11 - Los Glaciares - Campo de Gelo



De volta a Chalten não fiz muita coisa até a manhã seguinte, quando fiz as compras e me preparei para seguir até o Passo del Viento. Eu iria sozinho mesmo, já era início de Março e o parque estava com um movimento bem menor de turistas. De qualquer forma eram poucas as pessoas que iam para aqueles lados do parque. Tão poucas que a trilha até lá é bem mal marcada e chega a não existir em vários trechos, aonde caminha-se em campo aberto escolhendo o melhor caminho.

Para ir ao Passo del Viento é necessário obter com os guarda parques uma “autorização de escalada”, que é concedida sem problemas e é grátis. A autorização serve para que os guarda parques possam monitorar o movimento de pessoas na trilha, e possam sair a procura de alguém, caso essa pessoa não retorne dentro do prazo dado.

Os guarda parques me explicaram o caminho a seguir e me mostraram fotos do Passo, para que eu o reconhecesse. Além disto, Maurizio havia desenhado dois mapas, um mostrando o caminho até o passo, e outro indicando o caminho até o refúgio que existe na beira do Campo de Gelo. A existência de dois refúgios no caminho facilitava muito as coisas e pude viajar mais leve, sem levar a minha barraca.

Comecei a caminhar às 12:30 e depois de duas horas e meia de subida moderada, cheguei ao topo da encosta da montanha pela qual havia subido. De lá podia ver o Vale do Rio Túnel pelo qual iria prosseguir, até as margens do Lago Toro aonde dormiria no refúgio. Também podia ver o Passo, que ainda estava bem longe, mas diretamente à minha frente. Era tranquilizador vê-lo de tão longe, e o caminho parecia ser bastante óbvio à distância.

Iniciei a descer e logo estava no vale propriamente dito. A partir daí o relevo era praticamente plano, tão plano que grande parte do vale era um grande banhado. A trilha desaparecia e cabia a mim escolher o meu próprio caminho, e eu escolhi justamente o errado. Ao invés de me manter o mais próximo possível do leito do rio, o que seria o caminho certo, escolhi seguir em linha reta em direção ao Lago Toro, para assim caminhar menos.

Depois de mais ou menos quinze minutos comecei a encontrar água na minha frente, mas podia seguir saltando sobre pequenas “ilhas” que estavam acima da água, usando o bastão para caminhadas como apoio. Resolvi andar mais à direita, aonde havia uma floresta, pois ali certamente não haveria água. Na floresta as coisas não melhoraram tanto pois o mato era bastante fechado e era difícil caminhar com a mochila, que enroscava nos galhos várias vezes. Prossegui devagar, atravessando um pequeno rio que encontrei pelo caminho.

Estava revoltado por ter escolhido exatamente o caminho errado. Eu estava caminhando muito lentamente e começava a pensar na ironia que seria caso precisasse acampar no mato logo naquele dia, que tinha deixado a barraca na guarderia.

Depois de um longo tempo, acabei por encontrar a trilha e logo em seguida cheguei ao refúgio.

O refúgio era realmente engraçado, uma casinha de metal pintada de laranja, em forma de triângulo. Exatamente como uma casa de cachorro em tamanho exagerado. Não havia janelas, e dentro havia espaço para quatro pessoas apenas, o que permitia um rápido aquecimento do lugar.

Ao lado da casinha encontrei um outro refúgio improvisado por expedições anteriores, uma espécie de barraco, cujas paredes eram feitas de troncos de árvores caídas, e o teto era feito de lona, coberta com outras árvores menores para evitar que o plástico fosse arrancado pelo vento. Havia até uma porta, essa feita de tábuas mesmo. A decoração do lugar era feita com caveiras de vacas mortas, penduradas ao lado da porta. Dentro era bem escuro e havia um local para se fazer uma fogueira e cozinhar. Várias panelas enormes, de expedições anteriores, estavam empilhadas em um canto. Havia também latas de açúcar, chá, e algumas velas , que foram muito úteis pois eu tinha apenas uma lanterna como fonte de luz e não queria cozinhar gastando pilhas.

Fazia muito frio, com certeza devido à proximidade do Campo de Gelo, e dormi pesadamente logo após terminar o jantar.

Na manhã seguinte comi a minha tradicional panelada de Musli, à qual eu vinha acrescentando chocolate em pó, uma delicia.

Saí cedo, pois não tinha barraca para desarmar e também teria que atravessar o Rio Túnel, e como o rio é alimentado pelo degelo do glaciar, o melhor seria atravessá-lo o mais cedo possível, antes que o sol derretesse muito gelo.

Segui o Rio Túnel até chegar ao Lago Toro, que contornei pela direita conforme as indicações de Maurizio. Ao chegar ao lado oposto do lago, encontrei o trecho onde o rio que escorria do glaciar encontrava o lago. Neste ponto, o rio se dividia em vários braços menores, formando um delta, mais fácil de se transpor que o rio inteiro.

Me preparei para entrar na água, tirando as botas e as meias. Infelizmente eu não tinha sandálias, que seriam perfeitas para proteger os pés. Fiquei apenas de calças curtas e jaqueta, com o capuz levantado para proteger a cabeça da água caso eu escorregasse.

Me restava então escolher o lugar para a travessia, e foi aí que novamente eu cometi um erro, que poderia ter me custado muito caro. O pequeno delta entre o glaciar e o lago tinha algo como 50 metros de comprimento. Próximo ao glaciar a água era mais funda e a correnteza mais forte, pois eram poucos os canais por onde a água corria. Próximo ao lago o número de canais era bem maior, a correnteza mais fraca, e também a profundidade da água era menor. Logicamente escolhi fazer a travessia o mais próximo do lago possível.

Esse foi o meu erro. Eu não sabia que a água que escorre do degelo de um glaciar é carregada de sedimentos, e esses sedimentos se depositam ao longo do leito dos rios. Se a água corre com grande velocidade os sedimentos se mantém suspensos, depositando-se lentamente, dispersos em uma grande área. Se a água corre lentamente, os sedimentos se depositam em maior concentração naquele local. Era exatamente isso que acontecia nas margens do lago.

Tudo correu bem enquanto eu caminhei pela margem do lago aonde ela havia passado a noite toda sem estar coberta pela água. O piso era firme e plano. Assim que coloquei a perna dentro da água, para atravessar o primeiro canal, senti o meu pé tocar a areia do fundo e continuar a afundar, até a água estar pela metade da minha coxa. Tomei um susto enorme, e inclinei o corpo para trás, enquanto enfiei a outra perna na água para poder retirar a primeira.

Tudo foi muito rápido, e com movimentos um tanto desesperados consegui sair do pequeno canal, molhado até a cintura. Ninguém havia me prevenido sobre aquilo, e se eu tivesse encontrado a “areia movediça” longe da margem, tenho minhas dúvidas se teria conseguido sair da água.

Voltei com as pernas tremendo pela descarga de adrenalina até a parte alta do delta, e iniciei ali a travessia, utilizando o bastãozinho de caminhada como apoio. A água atingiu a altura do meio da minha coxa mas a travessia foi tranquila. O único problema é que por estar descalço tive que caminhar devagar para não machucar os pés e também tinha um pouco de dificuldade para manter o equilíbrio.

Uma vez do outro lado parei um pouco para secar os pés e me recuperar do susto, que foi sem duvida nenhuma o maior da viagem

A partir deste ponto segui uma trilha bem marcada que subia a montanha, contornando o glaciar. Depois de uns duzentos metros a trilha levava até o glaciar, por onde continuei a caminhar. O glaciar estava sem neve alguma e não havia fendas na beira dele. Somente ao caminhar mais para o interior é que se viam as fendas, que se aprofundavam e alargavam, até transformar a superfície do glaciar em uma coisa totalmente caótica e inóspita.

E lá estava eu, dando os meus primeiros passos em um glaciar de verdade. A caminhada com Maurizio havia sido fichinha perto desta. Era o Glaciar do Rio Túnel, as fendas eram enormes, e eu podia escutar os rios que corriam pelo fundo delas.

Continuei a seguir pela beira do glaciar, totalmente tomado pela emoção. Tudo ali era novo para mim, um universo enorme e desconhecido, de uma beleza estonteante, com formas estranhas e de dimensões enormes. As forças que moldavam aquela paisagem eram gigantes e me faziam sentir muito pequeno e insignificante.

Depois de andar mais ou menos um quilômetro sobre o gelo voltei a seguir a trilha, que reiniciava às margens do glaciar. Ela seguia paralela ao glaciar mas eu deveria virar a esquerda e subir uma rampa íngreme, aonde, segundo Maurizio, encontraria uma outra trilha, que era mais fácil de seguir. Subi a rampa procurando a segunda trilha, e quando a vi não pude alcançá-la pois no meu caminho havia uma encosta muito inclinada e escorregadia. Percebi então que havia cometido outro erro, havia subido a rampa que saía da trilha cedo demais. Se tivesse caminhado uns cem metros a mais antes de subir, não teria problemas com a rampa inclinada. A solução foi voltar até a trilha original, mas desta vez resolvi não tentar pegar a trilha de Maurizio, e seguir pela trilha normal.

A trilha normal me levou às margens de um lago formado por um segundo glaciar. A trilha terminava na margem esquerda do lago e era óbvio que devia seguir por ali mesmo, pois a apenas 300 metros dali acabava o vale e iniciava-se uma subida íngreme que levava até o Passo. Cheguei ao início da subida, mas não encontrei trilha alguma. Isso significava que a trilha que eu estava seguindo provavelmente não era a trilha “normal”. A trilha “normal” era a de Maurizio. De qualquer forma isso não importava mais muita coisa, e comecei a subir pela rampa, que era bastante íngreme, e coberta de grama.

Logo perdi contato visual com o Passo e me limitei a subir pelo caminho mais fácil, que por sorte me levava na direção certa. Continuei a subir, sempre procurando encontrar sinais de pessoas que houvessem passado por ali, mas não encontrava nada. Era uma sensação meio estranha, eu sabia que estava na direção certa, mas a falta de uma trilha ou algo que me confirmasse a direção, me fazia ficar um pouco nervoso. Procurava ver o Passo, mas como a rampa era íngreme demais, não o encontrava.

Depois de quase uma hora por essa subida pude ver o Passo a uns quinhentos metros de distância, à minha direita. Em seguida encontrei uma espécie de rampa que levava diretamente ao Passo, e era com certeza a “trilha”. Entretanto, não havia nenhum sinal da passagem de pessoas por ali. A grama, que é facilmente danificada ao ser pisada, estava em perfeitas condições.

Em dez minutos estava no topo, finalmente no Passo del Viento, que no Brasil se apresentava para mim como um dos pontos altos da viagem. E era realmente um ponto alto, a 1500 metros de altura. O vento, apesar de estar soprando bem forte não me impressionou muito pois eu esperava encontrar aqueles ventos que mal te permitem manter o equilíbrio em pé.

O mais impressionante de tudo era o visual. Atrás de mim podia ver os glaciares por onde passei, o Lago Toro, todo o Vale do Rio Túnel e também a encosta que o separa de Chalten. À minha frente porém, estava o lugar que sonhara ver desde que saíra de São Paulo, o Campo de Gelo Sul.

É difícil descrever o lugar e a emoção que senti ao vê-lo. O gelo estava a 800 metros de altitude, bem mais baixo que eu, e portanto podia vê-lo muito bem. Um verdadeiro mar, riscado por longas faixas marrom. O gelo não era branco como eu esperava, e sim meio cinza, devido à grande quantidade de pedras que o glaciar triturava com a sua passagem. As faixas marrom se formavam nas áreas onde havia maior atrito entre o gelo e a pedra. A superfície era plana, mas pontuada por “ilhas” que eram as montanhas cuja altura excediam a altitude do gelo.

O tempo estava encoberto, era difícil saber o que era nuvem e o que era neve. Era impossível identificar a linha do horizonte, e a sensação era a de estar penetrando em um outro mundo, em uma outra era. O campo de gelo parecia imutável, absolutamente poderoso, maior e mais pesado do que qualquer coisa ao seu redor. A imponência do visual me fez prender a respiração e praticamente calou o vento, que fazia barulho na minha orelha.

Podia ver o gelo se estender por aproximadamente 30 quilômetros à minha frente, aonde parecia estar o horizonte. O fim do campo de gelo era muito mais além. À minha direita a visão não alcançava muito longe pois era obstruída pela cordilheira aonde eu estava, mas eu podia ver ao longe um cordão de “ilhas” maravilhosamente brancas, que se elevavam do “mar” cinzento.

À esquerda havia uma espécie de “península” que avançava sobre o gelo. O gelo a contornava para em seguida iniciar uma longa e suave descida que iria levar ao Lago Viedma, o qual não era visível pois estava atrás de outra montanha. Essa parte do gelo que desce em direção ao lago, recebe o nome de Glaciar Viedma, o maior da América do Sul.

Fiquei por um bom tempo ali, paralisado pelo impacto do visual. O ponto onde eu estava representava o limite entre os domínios do homem , que ficavam para trás, e uma área aonde o homem não significava nada, e não havia nem mesmo plantas . Uma bandeira argentina hasteada de cabeça para baixo e meio destruída pelo vento, marcava este limite.

Apesar de o campo de gelo ser uma área absolutamente inóspita, ele é o motivo de uma séria disputa territorial entre o Chile e a Argentina, cujas relações diplomáticas estão razoavelmente abaladas por causa dela.

Durante um bom tempo ouvi falar da disputa sem entender o que poderia haver ali de tão valioso, até que li em um cartaz que o campo de gelo é uma enorme reserva de água doce para o futuro, quando, segundo algumas previsões, a água potável será uma mercadoria rara e valiosíssima.

Talvez o gelo não fosse tão inatingível como aparentava. Talvez ele tivesse sobrevivido milhões de anos intocado apenas para ser desperdiçado, usado para matar a sede de “progresso” do homem moderno.

Engraçado como podia ver estas coisas tão claramente estando tão mergulhado na natureza . A maneira absurda como o homem obtêm o seu sustento da natureza , lesando cada vez mais os recursos naturais em busca de mais dinheiro e conforto. Esquecendo se o quão pequena a espécie humana é perante a natureza e ignorando como estamos nos condenando a viver um futuro trágico por não condicionarmos o uso da tecnologia e a exerção de nossas atividades à uma manutenção do nosso patrimônio natural.

Previsões apocalípticas à parte, iniciei a descida em direção ao Campo de Gelo. Desci por uma trilha que acabou por desaparecer, mas o caminho a seguir era claro, devia virar a esquerda ao chegar ao final da descida, e seguir um riozinho, até que ele terminasse em um pequeno lago. Às margens do lago deveria encontrar o refúgio. Fazia bastante frio e cheguei ao refúgio sob uma fina “garoa” de neve.

O refúgio era bastante grande, com beliches para dez pessoas e mais espaço no chão para quem necessitasse. Fiz um chá e uma sopa para me recompor. Eu havia caminhado 5 horas do Lago Toro até o Passo del Viento (das quais uma hora e meia foram gastas em caminhos errados), e do Passo até o refúgio gastara 2 horas. Havia sido um dia cansativo, mas maravilhoso, e antes de dormir ainda dei mais umas voltas pelos arredores.

No dia seguinte saí para explorar o gelo. Desenhei um mapa com o trajeto que iria fazer e deixei em cima da mesa para o caso de eu sofrer algum acidente. Levei comigo roupas quentes, um pouco de comida, lanterna, um pedaço de corda e o meu fiel bastãozinho para caminhadas.

Pretendia caminhar em direção ao sul pela terra, para tentar ver o ponto onde o Glaciar Viedma encontra o lago de mesmo nome. Olhando do refúgio parecia ser logo ali, e mais uma vez eu me deixei enganar por esse tipo de ilusão. Eu estava a uma distância muito grande do lago, e caminhei por duas horas sem ver nenhum sinal dele. Havia sempre uma encosta a mais para subir ou uma curva a mais na montanha. Acabei desistindo, meio revoltado por gastar o meu escasso tempo caminhando em uma direção inútil. Voltei ao refúgio para comer e descansar um pouco.

À tarde saí na direção oeste, pela península que avançava para dentro do Campo de Gelo. Caminhei por uma hora e cheguei no topo da península, de onde podia ver gelo em quase todas as direções, simplesmente fantástico. De lá desci para finalmente caminhar sobre o gelo.

A área onde um glaciar encontra a pedra é uma zona interessante, aonde ocorre um incrível confronto de forças. A pedra tenta permanecer imóvel, mas o glaciar força a passagem, erodindo-a e às vezes perdendo pedaços também . Nessa zona há sempre pequenos rios de água correndo sobre gelo, erodindo o mesmo no processo.

Cheguei ao gelo justamente em uma área aonde havia uma espécie de reentrância no perfil da pedra. Isso fazia com que houvesse um grande buraco entre o gelo e a pedra pois o glaciar, ao correr paralelo à pedra, não preencheu esta reentrância. O resultado disto é que era possível se aproximar do glaciar “por baixo” dele.

Nesse local específico, a parede de gelo tinha apenas dez metros de altura, e não era uniforme, havia enormes rachaduras no gelo, através das quais era possível entrar no glaciar. Dentro destas pequenas cavernas a água escorria pelas paredes, formando pequenos rios no chão. Em certos lugares a água caía livre desde o teto até o chão, formando pequenas cascatas.

Era uma surpresa para mim encontrar logo de cara com uma caverna, pena ela ser tão pequena. Podia caminhar somente por uns dez metros no seu interior. As formas esculpidas no gelo pela água eram absurdas. A água correndo pelas paredes, caindo do teto, fazendo barulho ao tocar o chão, e depois continuando a correr, dava a impressão de o glaciar ser uma coisa viva, um monstro de água solidificada que avançava lenta, porém inexoravelmente.

Saí da “caverna” e escalei pela pedra para poder subir no topo do glaciar e finalmente caminhar sobre ele.

Era realmente como Maurizio me havia dito, não existiam fendas, e era seguro caminhar. O tempo estava encoberto desde a manhã, com uma cara ameaçadora, e eu o observava constantemente para evitar ser surpreendido por uma tempestade.

Aparentemente havia nevado um pouco a noite anterior pois a superfície do gelo estava coberta por grandes flocos brancos congelados. A superfície do gelo era bastante áspera e permitia um caminhar bastante seguro, se bem que um tanto assustador a princípio pois a cada passo eu esmagava os flocos congelados, que faziam barulho ao se romper.

A sensação que eu tinha era a de estar realmente em outro planeta, totalmente desconhecido. Não podia ver nenhuma fenda, mas podia ver algumas mini fendas, que aparentavam ser antigas fendas, recomprimidas e forçadas a se fechar de novo, porém deixando pequenas falhas na superfície. Essas pequenas falhas estavam cheias de água, cuja superfície estava congelada.

Quebrei a superfície gelada de algumas destas mini fendas para ver o quão fundo elas eram, e constatei que elas eram bem fundinhas, o suficiente para engolir uma pessoa.

Por sorte elas eram bem visíveis, e seria difícil cair em uma delas, de modo que me pus a caminhar pelo gelo, em direção ao horizonte. Depois de uns dez minutos não havia mais nenhuma “mini fenda”, o gelo se tornara ainda mais plano, e a única particularidade na superfície eram as ocasionais faixas marrons geradas pelos sedimentos que afloravam à superfície.

Pude perceber porém, que onde ocorriam as faixas marrom, o gelo apresentava pequenas rachaduras na sua superfície, o que podia esconder fendas maiores, e isso começou a me fazer sentir medo.

Parei para pensar no que Maurizio me havia dito, eles haviam passado duas semanas explorando aquela região e não encontraram fendas ou cavernas grandes, e por isso eu podia me tranquilizar e caminhar em paz.

Na realidade o que estava acontecendo é que eu estava me impressionando por estar em um lugar totalmente surreal e desconhecido, e estava com a minha capacidade de julgamento um pouco alterada. Por exemplo, eu escutava o barulho de minúsculos rios que correm pelo glaciar, e cogitava a hipótese de o barulho estar vindo de algum rio invisível que estivesse correndo bem embaixo dos meus pés, e que a superfície do gelo fosse ceder a qualquer momento e eu cairia em algum rio subterrâneo. Depois de pensar isso, o barulho que eu fazia ao caminhar esmagando o gelo, parecia ser o barulho de placas de gelo se rompendo para que eu caísse em alguma fenda invisível.

Eu sabia que estava exagerando, mas quando se está sozinho em um lugar estranho é muito mais fácil sentir medo. De qualquer forma o medo é uma sensação desagradável, mas super benéfica pois te impede de cometer excessos inúteis e perigosos.

Eu já estava caminhando pelo gelo há um bom tempo, e se eu estava começando a me sentir desconfortável, deveria ir embora sem me recriminar, afinal de contas aonde eu poderia chegar caminhando uma hora a mais, ou mesmo cinco horas a mais?

Chegaria a algum outro ponto onde encontraria gelo, pedra e água combinados de uma maneira bastante parecida às que já havia visto.

O ideal seria retornar ao gelo com mais algumas pessoas, com equipamento adequado, e com conhecimento sobre o local, para aí sim poder explorar e sentir a sensação de estar caminhando em outra dimensão sem sentir mais medo do que o necessário.

Resumindo, voltei ao refúgio. Havia tido bastante aventura nos últimos dias e estava acabando mais uma fase de caminhadas. Breve estaria pedalando de novo em direção a novas emoções.

Fui dormir cedo e continuei a viver grandes aventuras, desta vez em forma de sonho. Eu era perseguido por uma espécie de baleia assassina, azul clara e branca, as cores do gelo. Essa baleia simplesmente se materializava do gelo, era feita de gelo do glaciar. A minha sorte é que ela se despedaçava ao saltar fora do gelo. Mas ela se rematerializava em seguida, e continuava a me perseguir através dos glaciares.

Esse foi realmente um sonho muito louco, mas não foi o único nem o mais violento. Várias vezes durante a viagem tive sonhos estranhos e emocionantes, muito vívidos, e o melhor de tudo é que eu não os esquecia.

No dia seguinte me despedi do gelo. Parti ao meio dia, e prossegui por cinco horas, incluindo uma parada para almoço no meio do caminho, até o refúgio no Lago Toro.

Lá encontrei as primeiras pessoas que via em três dias, um casal de americanos e dois casais sul africanos. Nenhum deles estava planejando ir ao Campo de Gelo. Os americanos acabaram indo até o Passo del Viento no dia seguinte pois eu jurei que aquela era a visão mais impressionante que eles podiam ter no Parque. Eles foram, e concordaram comigo mais tarde quando nos reencontramos.

No dia seguinte caminhei com os sul africanos de volta a Chalten. Em Chalten fui tomar umas cervejas e escrever umas cartas. No dia seguinte iria embora do Parque em direção ao norte.

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